São Paulo, 14/JUL/1998
"Viver é tocar um instrumento musical
que não nos pertence!...”
Querido amigo: a Paz do Senhor Jesus!
Agradeço, de coração, sua lembrança fraterna, por ocasião do falecimento de minha mãe. Obrigado pelas suas orações e apoio.
Como foram muitos/as os que me escreveram ou telefonaram apresentando seus sentimentos de amizade permito-me, numa carta comum, partilhar o que aconteceu e o que vivenciei nesse mês que passei lá.
1. A “irmã morte”. Viajei para Vigo (Espanha) no dia 10/06, após urgentes chamadas telefônicas de meus irmãos. A viagem foi pesada e não consegui dormir nada. Mil pensamentos passavam pela minha cabeça: “como estará minha mãe?... Como eu reagiria ao que ia encontrar?...” Rezei no avião; rezei muito e chorei silenciosamente bastante! Depois de algum tempo senti que o Senhor me dizia: “O que você vai experimentar não será uma desgraça, mas uma grande graça!...” Esse pensamento me confortou.
Quando cheguei em casa, o clima estava pesado. Minha mãe em coma; meus irmãos e minhas cunhadas tristonhos... Não sei se ela me reconheceu; creio que sim, pois de vez em quando ela apertava sua mão na minha. Estava muito magra.
No dia 12 de junho, Corpus Christi, após um dia de respiração fatigante, por fim ela se acalmou. Eram quase 20h00. Senti que a Páscoa dela chegava. Aproximei-me mais e rezei diversos salmos. Vivi seus últimos momentos com admiração e respeito. Todos os filhos (menos minha irmã que é diminuída psíquica!) com suas mulheres estávamos lá. Por fim, às 23h50 parou de respirar. Era a primeira vez que acompanhei alguém até o último suspiro!
De manhã, tivemos uma missa, de corpo presente, na capela do Tanatório de Pereiró; só para a família. Éramos muitos! Presidi a Eucaristia, tirando forças da própria fraqueza. Lembrei de uma frase do Professor Evaristo de Miranda: “Quando éramos pequenos, nossos pais nos trouxeram à Igreja e nos apresentaram a Deus. Agora, somos nós que os trazemos a igreja e os entregamos definitivamente nas mãos do Senhor!...” A seguir, foi cremada, como ela mesma tinha pedido.
No dia seguinte, celebrei seu funeral às 18h00, na Igreja Paroquial de Santiago el Mayor, acompanhado pelo Pároco e diversos jesuítas do nosso Colégio “Santiago Apóstol”. A Igreja estava lotada. Após a cerimônia, emocionalmente cansado, viajei com meu irmão mais velho para Madri. Precisava descansar e dar-me um tempo para elaborar o que até então tinha sentido e experimentado. Fiquei uma semana.
2. “És pó e ao pó retornarás”. As experiências continuaram. O Senhor queria que experimentasse ainda “maiores graças”... E eu não fugi delas!
Anos atrás, minha mãe dissera para todos que queria que suas cinzas fossem colocadas numa grande rocha que há numa fazenda de sua propriedade. Decidimos, pois, no Domingo seguinte, levar suas cinzas ao lugar escolhido por ela mesma e que fica no alto de um morro.
Dois irmãos e eu começamos a subida, mas, por mais que o intentamos não conseguimos alcançar (nem ver!) a dita “Penha Grande” (assim é chamada!) devido ao grande acúmulo de mato e espinheiros. Depois de três tentativas frustradas (pelo lado Norte, Sul e Leste) decidimos colocar as cinzas da nossa mãe dentro das ruínas de uma antiga Capela, que ficava no meio de um bosque e também dentro da propriedade dela. Assim o fizemos. Rezamos e, com carinho e lágrimas, depositamos suas cinzas numa esquina daquela antiga capela. De fato, era um belo e simbólico lugar. Nossa mãe que sempre valorizara a Igreja, ficava agora, dentro de uma delas... Com dois pauzinhos, recolhidos ali mesmo, fiz uma singela cruz e lá a afinqui.
Tudo isto foi uma experiência nova e forte, jamais antes vivida: levar, numa bela urna, as cinzas da própria mãe e, depois, depositá-las humildemente, sem pompa alguma, na própria terra!... Haja coração!
3. Minha irmã, deficiente psíquica. O tempo de “graça” ainda não acabara. Faltava algo a mais e que deveria ser feito com o mesmo carinho e paixão que vinha experimentando: internar, num Centro para descapacitados psíquicos, minha única irmã, a caçula....
Talvez você não saiba: somos 5 homens e uma irmã. Só quando ela tinha 12 anos de idade é que percebemos o problema da diminuição psíquica. Minha mãe levou essa cruz com garbo, garra e paixão. Todos sabíamos, por experiência, que conviver com nossa irmã era muito difícil e complicado mas, nossa mãe assim o fizera por quase 50 anos, cuidando maternalmente dela e lutando para que nada lhe faltasse, mesmo quando ela viesse falecer.
Pois bem, esse dia chegou. Com o falecimento de minha mãe, o que era difícil fizera-se insuportável. Minha irmã estava cada vez mais nervosa e agressiva. Era preciso tomar alguma medida mais drástica e quem melhor do que o irmão padre para fazer isso?... Comecei, pois, a buscar um Centro ou Residência que pudesse acolhê-la...
Após algumas tentativas, encontramos uma bela residência, só para mulheres (apenas 20 residentes!) e administrada por uma religiosa (sem hábito!) das irmãs da Caridade. A residência “Stella Maris” fica perto de uma das praias mais badaladas de Nigrán, município próximo ao de Vigo, onde residem a maioria dos meus irmãos. Mas, ainda tínhamos que conseguir a vaga! Entrei logo em contato com o diretor da Fundação (um padre diocesano!) e disse-me que a última vaga disponível era nossa. Dei graças a Deus!
Mas, ainda faltava o pior: convencer minha irmã a ir à tal Residência. Todos achavam que isto seria impossível! Eu também pensava assim e sentia que ia ser muito difícil! O encomendei a Deus. Marcamos o dia 6 de julho para levá-la à Residência... O bendito dia chegou. Minha ansiedade era tal que nessa noite mal dormi... Aproveitei a hora do almoço para dizer à minha irmã que devia fazer as malas e marcar um horário de saída: “Você vai de férias!...” disse-lhe. Ela não queria e estava, naquele dia, de péssimo humor. Quando chegou a hora marcada disse-me: “Não estou-me sentindo bem. Eu não vou sair de casa!...” Fiquei gelado. Sem perder a paciência e com um carinho novo que brotava espontaneamente do meu coração, respondi que não podíamos mais retroceder!... E, como cordeiro levado ao matadouro, nos acompanhou!... Eu não acreditava como a coisa fluia melhor do que imaginava! Chegados à Residência Stella Maris, ela foi muito bem acolhida e mansamente ali ficou, junto com as outras 19 residentes.
Dois dias depois e com certo receio, fui visitá-la. A “menina” (carinhosamente assim a chamamos!) estava bem. O que parecia impossível, realizara-se! Dei graças a Deus!
Dois dias depois, voltava para o Brasil ruminando aquela primeira frase: “você experimentará uma grande graça!...”
Por tudo o passado, sentido e experimentado: louvado seja sempre o Senhor!
Com carinho e gratidão,
Pe. J. Ramón sj
* Fotografia: minha mãe com seus filhos: Francisco, Fabriciano, Estanislau, eu, Salvador e Josefina
Pe.Ramón,
ResponderExcluirProfunda sua partilha,não li só com os olhos,mas principalmente com o coração.
Gostei de conhecer mais de sua história
pessoal.Deus seja louvado pela sua família!
"Nós experimentamos a grande graça da sua presença fraterna e amiga."Sandra Márcia
Com certeza, está intercedendo por nós todos. Paz e bem!
ResponderExcluirLinda sua história PADRE RAMOM, e é um pouquinho disso, que cada um que se aproxima do sr. experimenta, um grande abraço, Daniela.
ResponderExcluirOlá Pe. Ramon, foi bom conhecer um pouco mais da sua vida...sua partilha foi profunda e bonita.Sinto-me próxima do Senhor de coração e alma. Deus o abençoe hoje e sempre.
ResponderExcluirCaro Pe. Ramon,
ExcluirUma bonita reflexão sobre as "graças" que o Senhor nos envia. Deus é bom.Nunca podemos nos esquecer dessa verdade.
Imagino todo o seu sofrimento.
Hoje, em minhas orações, lembrarei de sua mãe.
É bom conhece-lo um pouco mais.
Abraço,
Lylia
Sem muitas palavras...apenas o coração será capaz nesse momento de revelar tanta emoção e graça. Viver esse momento para mim seria de tremenda dor e saudade. Mas, por outro lado, fica a certeza de que Deus na sua infinita misericordia nos ampara com seu manto maternal, acolhendo nossa comoção e lagrimas. Rezaremos juntos.
ResponderExcluirtu madre, gran mujer, siempre estara en el corazon de todos los que la conocimos y quisimos.Muchos besos Victoria
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