Abre, Senhor, os meus lábios...



Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central. Para o judeu, ouvir Deus e orar a Ele fazia parte da sua identidade; ele repete todos os dias o “Shemá Israel” (escuta, Israel...(Dt 6,4-9). Esta prática cotidiana estava ligada diretamente com a saúde, pois o “Shemá”, diziam, 248 palavras que corresponderiam aos 248 órgãos que acreditavam ter o corpo humano. Assim, recitavam as 248 palavras pela “saúde” dos respectivos órgãos do corpo, pois não é só a boca que ora, mas também o fígado, os rins e cada músculo...

Ser “surdo e mudo”, para o hebreu, afastava-o da essência da devoção, pois não podiam usar o ouvido nem a palavra.

Para a psicologia, quem não fala nem escuta não desenvolve a linguagem, característica mais íntima do ser humano. Este é o pano de fundo para considerar esta cura, feita por Jesus com a linguagem não-verbal, linguagem mais primitiva e anterior à palavra. Para o bebê, a linguagem não-verbal (gestos da mãe, olhar, aconchego, alimento...), o constrói como ser humano e assim é humanizado. Também nós precisamos desta cura profunda!

Eis os passos, cheios de simbolismo, que o Evangelista Marcos nos apresenta (Mc 7, 31-37):

1. Jesus conduz o surdo-mudo à parte, longe da multidão... Condução não-verbal, pela mão, longe da massificação. E o surdo-mudo deixa-se conduzir... Confiança originada não na fala, mas em outros sinais captados interiormente. E lá,  o deficiente é cuidado na sua limitação.

2. Jesus pôs os dedos nos ouvidos... Literalmente: pôs o dedo na ferida! A mão, fonte de contato, é passagem do amor e do poder curador.

3. Depois, tocou-lhe a língua com saliva... Como a saliva da mãe que aplaca a dor e limpa a ferida do filho. Quem não fez isso alguma vez? Não é a palavra que sai da boca de Jesus, mas o líquido que cura, remetendo a uma comunicação por líquidos, como no útero. Freud diz que o sofrimento vem da sensação de desamparo, quando fomos expulsos do paraíso do ventre materno. Jesus restitui essa ligação primordial, e restaura uma conexão que faz suportar o “desamparo” com o amparo da compaixão.

4. Levantando os olhos ao céu... para o alto, em direção ao Pai. É preciso remete-se sempre ao Pai, origem de toda vida e ser de novo “matriciado” e gerado. Com esse olhar, Jesus introduz aquele que não fala nem ouve no “Shemá Israel”: O Senhor é o nosso único Deus!

5. Jesus suspirou... "Ruach" solidário, sopro do Espírito, presença invisível de Deus e anúncio do sopro que logo passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.

6. E disse-lhe: ‘Effatha’ (abre-te!). Depois dos gestos não-verbais e primitivos, vem a força da palavra. E o surdo-mudo começa a falar; insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único. Sua cura revela que o Reino de Deus chegou.

Uma pergunta: O que está mudo em você? (O que não fala e deveria dizer? Quê palavras se transformaram em condutas agressivas?)
  

5 comentários:

  1. Olá Pe.Ramón estamos sentindo sua falta, seu alto astral, seu carisma. Parabéns, tenho visitado seu Blogger, está ótimo. Como vai de Brasilia, já se adaptou? Bom fim de semana,
    grande abraço,

    Armando Lemes.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. ei amigo,
      tem tantas coisas que estão mudas em mim... E outras que são excessivamente tagarelas.
      Obrigado pela significativa reflexão,
      Fernando.

      Excluir
    2. olá amigo,
      paz!
      são tantas coisas em mim que precisam ser faladas. E tantas outras que necessitam mais de silêncio.
      Obrigado pela significativa reflexão.
      abraços,
      Fernando.

      Excluir
    3. Oi, Rámon!É muito bom ler suas reflexões tão ricas, mas eu queria mesmo é poder conversar com vc.Abração.Ernesta

      Excluir
  2. Olá Pe. Ramon,
    tenho que emudecer em certas coisas e falar em outras tantas.....Belo texto e boa reflexão.
    Abraçossssss
    Marilene

    ResponderExcluir