Quem é Jorge Mario
Bergoglio? Tenho a pergunta pronta, mas decido não seguir o esquema que fixara e
pergunto um pouco à queima-roupa: Quem é Jorge Mario Bergoglio? O Papa
fixa-me em silêncio. Pergunto se é uma pergunta lícita para lhe colocar… Ele
faz sinal de aceitar a pergunta e diz-me: Não sei qual possa ser a definição mais correcta…
Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, um
género literário. Sou um pecador.
O Papa continua a reflectir, como se
não esperasse aquela pergunta, como se fosse obrigado a uma reflexão ulterior. Sim, posso talvez dizer que sou um pouco
astuto, sei mover-me, mas é verdade que sou também um pouco ingénuo. Sim, mas a
síntese melhor, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é
exactamente esta: “Sou um pecador para quem o Senhor olhou”. E repete: Sou alguém que é olhado pelo Senhor. A minha
divisa, Miserando atque eligendo, senti-a sempre como muito
verdadeira para mim.
A divisa do Papa Francisco é tirada das Homilias de São Beda, o Venerável, o qual, comentando o episódio evangélico da vocação de São Mateus, escreve: «Viu Jesus um publicano e assim como o olhou com um sentimento de amor, escolheu-o e disse-lhe: “Segue-me”».
A divisa do Papa Francisco é tirada das Homilias de São Beda, o Venerável, o qual, comentando o episódio evangélico da vocação de São Mateus, escreve: «Viu Jesus um publicano e assim como o olhou com um sentimento de amor, escolheu-o e disse-lhe: “Segue-me”».
E acrescenta: O gerúndio latino miserando parece-me
intraduzível, seja em italiano, seja em espanhol. Gosto de o traduzir com um
outro gerúndio que não existe: misericordiando».
O Papa Francisco continua a sua reflexão e diz-me, fazendo um salto cujo
sentido não compreendo, naquele momento: Eu
não conheço Roma. Conheço poucas coisas. Entre estas, Santa Maria Maior: ia
sempre lá. Rio e digo-lhe: Todos o
compreendemos muito bem, Santo Padre! Sim
— prossegue o Papa – conheço Santa Maria
Maior, São Pedro… mas vindo a Roma sempre vivi na Via della Scrofa. Dali
visitava frequentemente a igreja de São Luís dos Franceses e ali ia contemplar
o quadro da vocação de São Mateus, de Caravaggio. Começo a intuir o que é
que o Papa quer dizer-me.
Aquele dedo de Jesus assim… dirigido a
Mateus. Assim sou eu. Assim me sinto. Como Mateus. E aqui o Papa torna-se
mais decidido, como se tivesse encontrado a imagem de si próprio de que estava
à procura: É o gesto de Mateus que me
toca: agarra-se ao seu dinheiro, como que a dizer: “Não, não eu! Não, este
dinheiro é meu!”. Este sou eu: um pecador para o qual o Senhor voltou o seu
olhar. E isto é aquilo que disse quando me perguntaram se aceitava a minha
eleição para Pontífice. Então sussurra: Peccator
sum, sed super misericordia et infinita patientia Domini nostri Jesu Christi,
confusus et in spiritu penitentiae,
accepto». (Sou pecador, mas confiado na misericórdia e paciência
infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo, confundido e em espírito de penitência,
aceito).
Por que se fez jesuíta? Compreendo que esta fórmula de aceitação é para
o Papa Francisco mesmo um bilhete de identidade. Não há nada mais a
acrescentar. Prossigo com aquela que tinha escolhido como primeira pergunta: Santo Padre, o que foi que o fez escolher
entrar na Companhia de Jesus? O que é que o impressionou na ordem dos Jesuítas?
Eu queria algo mais. Mas não sabia o quê.
Tinha entrado no seminário. Gostava dos dominicanos e tinha amigos dominicanos.
Mas depois escolhi a Companhia, que conhecia bem, porque o seminário estava
entregue aos jesuítas. Da Companhia impressionaram-me três coisas: o espírito
missionário, a comunidade e a disciplina. Isto é curioso, porque eu sou um
indisciplinado nato, nato, nato. Mas a sua disciplina, o modo de organizar o
tempo, impressionaram-me muito.
E depois uma coisa para mim
verdadeiramente fundamental é a comunidade. Procurava sempre uma comunidade. Eu
não me via padre sozinho: preciso de uma comunidade. É mesmo isso que explica o
facto de eu estar aqui em Santa Marta: quando fui eleito, ocupava, por sorteio,
o quarto 207. Este onde estamos agora era um quarto de hóspedes. Escolhi ficar
aqui, no quarto 201, porque quando tomei posse do apartamento pontifício,
dentro de mim senti claramente um “não”. O apartamento pontifício no Palácio
Apostólico não é luxuoso. É antigo, arranjado com bom gosto e grande, não
luxuoso. Mas acaba por ser como um funil ao contrário. É grande e espaçoso, mas
a entrada é verdadeiramente estreita. Entra-se a conta-gotas e eu não, sem
gente, não posso viver. Preciso viver a minha vida junto dos outros.
Enquanto o Papa fala de missão e de comunidade, vêm-me à mente todos os
documentos da Companhia de Jesus onde se fala de «comunidade para a missão» e
reencontro-os nas suas palavras.
O que significa para um jesuíta ser Papa? Quero prosseguir nesta linha e
coloco ao Papa uma pergunta que surge do fato de que ele é o primeiro jesuíta a
ser eleito bispo de Roma: Como lê, à luz
da espiritualidade inaciana, o serviço à Igreja Universal a que foi chamado a
exercer? O que significa para um jesuíta ser eleito Papa? Que ponto da espiritualidade
inaciana o ajuda melhor a viver o seu ministério?
O discernimento, responde o Papa
Francisco. O discernimento é uma das
coisas que Santo Inácio mais trabalhou interiormente. Para ele, é um
instrumento de luta para conhecer melhor o Senhor e segui-l’O mais de perto.
Impressionou-me sempre uma máxima com que se descreve a visão de Inácio: Non coerceri a maximo, sed contineri a
minimo divinum est. (não estar constrangido pelo máximo, e
no entanto, estar inteiramente contido no mínimo, isso é divino). Reflecti muito sobre esta frase a propósito
do governo, de ser superior: não estarmos restringidos pelo espaço maior, mas
sermos capazes de estar no espaço mais restrito. Esta virtude do grande e do
pequeno é a magnanimidade, que da posição em que estamos nos faz olhar sempre o
horizonte. É fazer as coisas pequenas de cada dia com o coração grande e aberto
a Deus e aos outros. É valorizar as coisas pequenas no interior de grandes
horizontes, os do Reino de Deus.
Esta máxima oferece os parâmetros para
assumir uma posição correcta para o discernimento, para escutar as coisas de
Deus a partir do seu “ponto de vista”. Para Santo Inácio, os grandes princípios
devem ser encarnados nas circunstâncias de lugar, de tempo e de pessoas. A seu
modo, João XXIII colocou-se nesta posição de governo quando repetiu a máxima Omnia
videre, multa dissimulare, pauca corrigere, (ver tudo, não dar
importância a muito, corrigir pouco) porque mesmo vendoomnia, a dimensão máxima, preferia agir sobre pauca, sobre uma
dimensão mínima. Podem ter-se grandes projectos e realizá-los, agindo sobre
poucas pequenas coisas. Ou podem usar-se meios fracos que se revelam mais
eficazes do que os fortes, como diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios.
Este discernimento requer tempo. Muitos,
por exemplo, pensam que as mudanças e as reformas podem acontecer em pouco
tempo. Eu creio que será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma
mudança verdadeira e eficaz. E este é o tempo do discernimento. E por vezes o
discernimento, por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente
se pensava fazer depois. E foi isto o que também me aconteceu nestes meses. E o
discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais,
escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos
pobres. As minhas escolhas, mesmo aquelas ligadas à vida quotidiana, como usar
um automóvel modesto, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde
a uma exigência que nasce das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos
tempos. O discernimento no Senhor guia-me no meu modo de governar.
Pelo contrário, desconfio das decisões
tomadas de modo repentino. Desconfio sempre da primeira decisão, isto é, da
primeira coisa que me vem à cabeça fazer, se tenho de tomar uma decisão. Em
geral, é a decisão errada. Tenho de esperar, avaliar interiormente, tomando o
tempo necessário. A sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade
da vida e faz encontrar os meios mais oportunos, que nem sempre se identificam
com aquilo que parece grande ou forte.
A Companhia de Jesus. O discernimento é, portanto, um pilar da
espiritualidade do Papa. Nisto se exprime de modo peculiar a sua identidade
jesuítica. Pergunto-lhe, pois, como pensa que a Companhia de Jesus poderá
servir melhor a Igreja hoje, qual é a sua especificidade, mas também os
eventuais riscos que corre.
A Companhia é uma instituição em tensão,
sempre radicalmente em tensão. O jesuíta é um descentrado de si próprio. A
Companhia é descentrada de si mesma: o seu centro é Cristo e a sua Igreja. Por
isso: se a Companhia coloca Cristo e a Igreja no centro, tem dois pontos
fundamentais de referência do seu equilíbrio para viver na periferia. Se, pelo
contrário, olha demasiado para si própria, se se coloca a si mesma no centro
como estrutura bem sólida, muito bem “armada”, então corre o perigo de
sentir-se segura e autossuficiente. A Companhia deve ter sempre diante de si o Deus
semper maior, a procura da glória de Deus sempre maior, a Igreja Verdadeira Esposa de Cristo Nosso
Senhor, Cristo Rei que nos conquista e a Quem oferecemos toda a
nossa pessoa e todo o nosso esforço, mesmo se somos vasos de barro,
inadequados. Esta tensão leva-nos constantemente para fora de nós próprios. O
instrumento que torna verdadeiramente forte a Companhia descentrada de si mesma
é o da “conta de consciência”, que é simultaneamente paternal e fraternal,
precisamente porque a ajuda a sair melhor em missão.
Mas é difícil falar da Companhia – prossegue o Papa Francisco. Quando se explicita demasiado, corremos o risco de nos enganarmos. A Companhia só se pode exprimir em forma narrativa. Somente na narração se pode fazer discernimento, não na explicação filosófica ou teológica, onde, pelo contrário, se pode discutir. O estilo da Companhia não é o da discussão, mas o do discernimento, que obviamente pressupõe a discussão no processo. A aura mística não define nunca os seus limites, não completa o pensamento. O jesuíta deve ser uma pessoa de pensamento incompleto, de pensamento aberto. Houve épocas na Companhia nas quais se viveu um pensamento fechado, rígido, mais instrutivo-ascético do que místico: esta deformação gerou o Epitome Instituti.
Aqui o Papa refere-se a uma espécie de resumo prático, que se usou na Companhia e reformulado no século XX, que foi considerado como uma substituição das Constituições. A formação dos jesuítas na Companhia durante um certo tempo foi modelada por este texto, de tal maneira que alguns nunca leram as Constituições, que, na verdade, são o texto fundante. Para o Papa, durante este período na Companhia as regras correram o risco de abafar o espírito e foi a tentação de explicitar e afirmar demasiado o carisma que venceu.
Continua: Não, o jesuíta pensa sempre, continuamente, olhando o horizonte para onde deve ir, tendo Cristo no centro. Esta é a sua verdadeira força. E isto estimula a Companhia a estar à procura, a ser criativa, generosa. Portanto, hoje mais do que nunca, deve ser contemplativa na acção; deve viver uma proximidade profunda a toda a Igreja, entendida como “Povo de Deus” e “Santa Madre Igreja hierárquica”. Isto requer muita humildade, sacrifício, coragem, especialmente quando se vivem incompreensões ou se é objeto de equívocos e calúnias, mas é a atitude mais fecunda. Pensemos nas tensões do passado sobre os ritos chineses, sobre os ritos malabares, nas reduções no Paraguai.
Eu mesmo sou testemunha das incompreensões e problemas que a Companhia viveu mesmo recentemente. Entre estes, contam-se os tempos difíceis de quando se tratou da questão de alargar o “quarto voto” de obediência ao Papa a todos os jesuítas. Aquilo que me dava segurança no tempo do Padre Arrupe era o fato de que ele era um homem de oração, um homem que passava muito tempo em oração. Recordo-o quando rezava sentado no chão, como fazem os japoneses. Por isso ele tinha a atitude certa e tomou as decisões corretas.
O modelo: Pedro Fabro, «padre reformado». Neste momento pergunto-me se entre os jesuítas existem figuras, das origens da Companhia até hoje, que o tenham impressionado de modo particular. E assim pergunto ao Pontífice se existem, quais são e por quê. O Papa começa a citar-me Inácio e Francisco Xavier, mas depois se detém sobre uma figura que os jesuítas conhecem, mas que certamente não é muito notada em geral: o Beato Pedro Fabro (1506-1646), da Sabóia. É um dos primeiros companheiros de Santo Inácio, aliás o primeiro, com o qual partilhou o quarto quando eram os dois estudantes na Sorbonne. O terceiro no mesmo quarto era Francisco Xavier. Pio IX declarou-o beato a 5 de Setembro de 1872, e está em curso o seu processo de canonização. Cita-me o seu Memorial, cuja edição ele encarregou a dois jesuítas especialistas, Miguel A. Fiorito e Jaime H. Amadeo, quando era superior provincial. O Papa gosta particularmente da edição a cargo de Michel de Certeau. Pergunto-lhe porque ficou tão impressionado por Fabro, que traços da sua figura o impressionam.
O diálogo com todos, mesmo os mais afastados e os adversários; a piedade simples, talvez uma certa ingenuidade, a disponibilidade imediata, o seu atento discernimento interior, o fato de ser um homem de grandes e fortes decisões e ao mesmo tempo capaz de ser assim doce, doce...
Enquanto o Papa Francisco faz esta lista de características pessoais do seu jesuíta preferido, compreendo quanto esta figura terá sido na verdade para ele um modelo de vida. Michel de Certeau define Fabro simplesmente como «o padre reformado», para quem a experiência interior, a expressão dogmática e a reforma estrutural são intimamente indissociáveis. Parece-me compreender, portanto, que o Papa Francisco se inspira precisamente neste gênero de reforma. Assim, o Papa continua com uma reflexão sobre o verdadeiro rosto do fundador.
Inácio é um místico, não um asceta. Aborrece-me muito ouvir dizer que os Exercícios Espirituais são inacianos apenas porque são feitos em silêncio. Na verdade, os Exercícios podem ser perfeitamente inacianos também na vida corrente e sem o silêncio. A corrente que sublinha o ascetismo, o silêncio e a penitência é uma corrente deformada que se difundiu na própria Companhia, especialmente no âmbito espanhol. Pelo contrário, eu estou próximo da corrente mística, a de Louis Lallemant e de Jean-Joseph Surin. E Fabro era um místico.
A experiência de governo. Que tipo de experiência de governo pode fazer amadurecer a formação que teve o padre Bergoglio, que foi superior e depois provincial na Companhia de Jesus? O estilo de governo da Companhia implica a decisão por parte do superior, mas também o atender ao parecer dos seus «consultores». Assim, pergunto ao Papa: Acha que a sua passada experiência de governo pode servir à sua atual ação no governo da Igreja Universal? O Papa Francisco, depois de uma breve pausa de reflexão, torna-se sério, mas muito sereno.
Na minha experiência de superior na Companhia, para dizer a verdade, nem sempre me comportei assim, ou seja, fazendo as necessárias consultas. E isso não foi uma boa coisa. O meu governo como jesuíta no início tinha muitos defeitos. Estávamos num tempo difícil para a Companhia: tinha desaparecido uma inteira geração de jesuítas. Por isto, vi-me nomeado Provincial ainda muito jovem. Tinha 36 anos: uma loucura. Era preciso enfrentar situações difíceis e eu tomava as decisões de modo brusco e individualista. Sim, devo acrescentar, no entanto, uma coisa: quando entrego uma coisa a uma pessoa, confio totalmente nessa pessoa. Terá que cometer um erro verdadeiramente grande para que eu a repreenda. Mas, apesar disto, as pessoas acabam por se cansar do autoritarismo. O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios problemas e a ser acusado de ser ultraconservador. Vivi um tempo de grande crise interior quando estava em Córdova. Claro, não, não sou certamente como a Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi o meu modo autoritário de tomar decisões que criou problemas.
Digo estas coisas como uma experiência de vida e para ajudar a compreender quais são os perigos. Com o tempo aprendi muitas coisas. O Senhor permitiu esta pedagogia de governo, mesmo através dos meus defeitos e dos meus pecados. Assim, como arcebispo de Buenos Aires, fazia cada quinze dias uma reunião com os seis bispos auxiliares e várias vezes por ano com o Conselho Presbiteral. Colocavam-se perguntas e abria-se espaço para a discussão. Isto me ajudou muito a tomar as melhores decisões. E agora oiço algumas pessoas que me dizem: “Não consulte demasiado e decida”. Acredito, no entanto, que a consulta é muito importante. Os Consistórios e os Sínodos são, por exemplo, lugares importantes para tornar verdadeira e ativa esta consulta. É necessário torná-los, no entanto, menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais. A consulta dos oito cardeais, este grupo outsider, não é uma decisão simplesmente minha, mas é fruto da vontade dos cardeais, tal como foi expressa nas Congregações Gerais antes do Conclave. E quero que seja uma consulta real, não formal.
Sentir com a Igreja. Mantenho-me no tema da Igreja e procuro compreender o que significa exatamente para o Papa Francisco o «sentir com a Igreja», de que escreve Santo Inácio nos seus Exercícios Espirituais. O Papa responde sem hesitação, partindo de uma imagem.
A imagem da Igreja de que gosto é a do povo santo e fiel de Deus. É a definição que uso mais vezes e é a da Lumen Gentium, no número 12. A pertença a um povo tem um forte valor teológico: Deus na história da salvação salvou um povo. Não existe plena identidade sem pertença a um povo. Ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos considerando a complexa trama de relações interpessoais que se realizam na comunidade humana. Deus entra nesta dinâmica do povo.
O povo é sujeito. E a Igreja é o povo de Deus a caminho na história, com alegrias e dores. Sentire cum Ecclesia é para mim, pois, estar neste povo. E o conjunto dos fiéis é infalível no crer, e manifesta esta sua infallibilitas in credendo mediante o sentido sobrenatural da fé de todo o povo que caminha. É isto o que eu entendo hoje como o “sentir com a Igreja” de que fala Santo Inácio. Quando o diálogo entre as pessoas e o bispo e o Papa segue este caminho e é leal, então é assistido pelo Espírito Santo. Não é, portanto, um sentir ligado aos teólogos.
É como com Maria: se se quiser saber quem é, pergunta-se aos teólogos; se se quiser saber como amá-la, é necessário perguntá-lo ao povo. Por sua vez, Maria amou Jesus com coração de povo, como lemos no Magnificat. Não é preciso sequer pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir com a sua parte hierárquica.
E o Papa, depois de um momento de pausa, para evitar mal-entendidos, secamente precisa: E, obviamente, é necessário estar bem atentos a não pensar que esta infallibilitas de todos os fiéis de que estou a falar à luz do Concílio seja uma forma de populismo. Não: é a experiência da “Santa Madre Igreja hierárquica”, como lhe chamava Santo Inácio, da Igreja como povo de Deus, pastores e povo em conjunto. A Igreja é a totalidade do povo de Deus.
Vejo a santidade no povo de Deus, a sua santidade quotidiana. Existe uma “classe média da santidade” da qual todos podemos fazer parte, aquela de que fala Malègue.
O Papa está a referir-se a Joseph Malègue, um escritor francês que lhe é querido, nascido em 1876 e falecido em 1940. Em particular, à sua trilogia incompleta Pierres noires. Les Classes moyennes du Salut. Alguns críticos franceses definiram-no como o «Proust católico».
Vejo a santidade — continua o Papa — no povo de Deus paciente: uma mulher que cria os filhos, um homem que trabalha para levar o pão para casa, os doentes, os sacerdotes idosos com tantas feridas, mas com um sorriso por terem servido o Senhor, as Irmãs que trabalham tanto e que vivem uma santidade escondida. Esta é, para mim, a santidade comum. Associo frequentemente a santidade à paciência: não só a santidade como hypomoné, o encarregar-se dos acontecimentos e circunstâncias da vida, mas também como constância no seguir em frente dia após dia. Esta é a santidade da Igreja militante de que fala também Santo Inácio. Esta é também a santidade dos meus pais: do meu pai, da minha mãe, da minha avó Rosa, que me fez tanto bem. No breviário tenho o testamento da minha avó Rosa e leio-o frequentemente: para mim é como uma oração. Ela é uma santa que sofreu tanto, também moralmente, e seguiu sempre em frente com coragem.
Esta Igreja com a qual devemos “sentir” é a casa de todos, não uma pequena capela que só pode conter um grupinho de pessoas selecionadas. Não devemos reduzir o seio da Igreja universal a um ninho protetor da nossa mediocridade. E a Igreja é Mãe — continua. A Igreja é fecunda, deve sê-lo. Veja: quando me apercebo de comportamentos negativos de ministros da Igreja ou de consagrados ou consagradas, a primeira coisa que me vem à cabeça é: «Cá está um solteirão» ou «Cá está uma solteirona». Não são nem pais, nem mães. Não são capazes de gerar vida. Pelo contrário, quando leio, por exemplo, a vida dos missionários salesianos que foram para a Patagónia, leio uma história de vida, de fecundidade.
Um outro exemplo destes dias: vi que foi muito referido nos jornais o telefonema que fiz a um rapaz que me tinha escrito uma carta. Telefonei-lhe, porque aquela carta era tão bela, tão simples. Para mim isto foi um ato de fecundidade. Apercebi-me que é um jovem que está a crescer, sentiu em mim um pai, e assim eu disse-lhe alguma coisa sobre a sua vida. Um pai não pode dizer: “Não tenho nada que ver com isso”. Esta fecundidade faz-me muito bem.
Igrejas jovens e Igrejas antigas. Permaneço no tema da Igreja, colocando ao Papa uma pergunta, também à luz da recente Jornada Mundial da Juventude: Este grande evento acendeu ulteriormente os focos sobre os jovens, mas também sobre aqueles “pulmões espirituais” que são as Igrejas de instituição mais recente. Quais as esperanças para a Igreja universal que lhe parecem provir destas Igrejas.
As Igrejas jovens desenvolvem uma síntese de fé, cultura e vida em devir, e, portanto, diferente da desenvolvida pelas Igrejas mais antigas. Para mim, a relação entre as Igrejas mais antigas e as mais recentes é semelhante à relação entre jovens e velhos numa sociedade: constroem o futuro, mas uns com a sua força e os outros com a sua sabedoria. Correm-se sempre riscos, obviamente; as Igrejas mais jovens correm o risco de se sentirem autossuficientes, as mais antigas correm o risco de querer impor às mais jovens os seus modelos culturais. Mas o futuro constrói-se conjuntamente.
A Igreja? Um hospital de campanha... O Papa Bento XVI, ao anunciar a sua renúncia ao Pontificado, retratou o mundo de hoje como sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, que requerem vigor, seja do corpo, seja da alma. Pergunto ao Papa, também à luz daquilo que acabou de me dizer: De que é que a Igreja tem maior necessidade neste momento histórico? São necessárias reformas? Quais são os seus desejos para a Igreja dos próximos anos? Que Igreja “sonha”?
O Papa Francisco, tomando o incipit da minha pergunta, começa por dizer: O Papa Bento teve um ato de santidade, de grandeza, de humildade. É um homem de Deus, demonstrando um grande afeto e uma enorme estima pelo seu predecessor.
Vejo com clareza — continua — que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é necessário começar de baixo.
A Igreja por vezes encerrou-se em
pequenas coisas, em pequenos preceitos. O mais importante, no entanto, é o
primeiro anúncio: “Jesus Cristo salvou-te”. E os ministros da Igreja devem ser,
acima de tudo, ministros de misericórdia. O confessor, por exemplo, corre
sempre o risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista. Nenhum dos
dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma verdadeiramente a seu cargo
a pessoa. O rigorista lava as mãos porque remete-o para o mandamento. O laxista
lava as mãos dizendo simplesmente “isto não é pecado” ou coisas semelhantes. As
pessoas têm de ser acompanhadas, as feridas têm de ser curadas.
Como estamos a tratar o povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado. Os bispos, em particular, devem ser capazes de suportar com paciência os passos de Deus no seu povo, de tal modo que ninguém fique para trás, mas também para acompanhar o rebanho que tem o faro para encontrar novos caminhos.
Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem.
Reflito naquilo que o Papa está a dizer e refiro o fato que existem cristãos que vivem em situações não regulares para a Igreja ou, de qualquer modo, em situações complexas, cristãos que, de um modo ou de outro, vivem feridas abertas. Penso nos divorciados recasados, casais homossexuais, outras situações difíceis. Como fazer uma pastoral missionária nestes casos? Em que insistir? O Papa faz sinal de ter compreendido o que pretendo dizer e responde.
Como estamos a tratar o povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado. Os bispos, em particular, devem ser capazes de suportar com paciência os passos de Deus no seu povo, de tal modo que ninguém fique para trás, mas também para acompanhar o rebanho que tem o faro para encontrar novos caminhos.
Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem.
Reflito naquilo que o Papa está a dizer e refiro o fato que existem cristãos que vivem em situações não regulares para a Igreja ou, de qualquer modo, em situações complexas, cristãos que, de um modo ou de outro, vivem feridas abertas. Penso nos divorciados recasados, casais homossexuais, outras situações difíceis. Como fazer uma pastoral missionária nestes casos? Em que insistir? O Papa faz sinal de ter compreendido o que pretendo dizer e responde.
Devemos anunciar o Evangelho em todos os caminhos, pregando a boa nova do Reino e curando, também com a nossa pregação, todo o tipo de doença e de ferida. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais, que são “feridos sociais”, porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto. Durante o voo de regresso do Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual é de boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la. Dizendo isso, eu disse aquilo que diz o Catecismo. A religião tem o direito de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas, mas Deus, na criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível. Uma vez uma pessoa, de modo provocatório, perguntou-me se aprovava a homossexualidade. Eu, então, respondi-lhe com uma outra pergunta: “Diz-me: Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova a sua existência com afeto ou rejeita-a, condenando-a?” É necessário sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no mistério do homem. Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos acompanhá-las a partir da sua condição. É preciso acompanhar com misericórdia. Quando isto acontece, o Espírito Santo inspira o sacerdote a dizer a coisa mais apropriada.
Esta é também a grandeza da confissão: o fato de avaliar caso a caso e de poder discernir qual é a melhor coisa a fazer por uma pessoa que procura Deus e a sua graça. O confessionário não é uma sala de tortura, mas lugar de misericórdia, no qual o Senhor nos estimula a fazer o melhor que pudermos. Penso também na situação de uma mulher que carregou consigo um matrimônio fracassado, no qual chegou a abortar. Depois esta mulher voltou a casar e agora está serena, com cinco filhos. O aborto pesa-lhe muito e está sinceramente arrependida. Gostaria de avançar na vida cristã. O que faz o confessor?
Não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei muito destas coisas e censuraram-me por isso. Mas quando se fala disto, é necessário falar num contexto. De resto, o parecer da Igreja é conhecido e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente.
Os ensinamentos, tanto dogmáticos como morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor insistentemente. O anúncio de caráter missionário concentra-se no essencial, no necessário, que é também aquilo que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Devemos, pois, encontrar um novo equilíbrio; de outro modo, mesmo o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois as consequências morais.
Digo isto também pensando na pregação e nos conteúdos da nossa pregação. Uma bela homilia, uma verdadeira homilia, deve começar com o primeiro anúncio, com o anúncio da salvação. Não há nada de mais sólido, profundo e seguro do que este anúncio. Depois deve fazer-se uma catequese. Assim, pode tirar-se também uma consequência moral. Mas o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa. Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa. A homilia é a pedra de comparação para calibrar a proximidade e a capacidade de encontro de um pastor com o seu povo, porque quem prega deve reconhecer o coração da sua comunidade para procurar onde está vivo e ardente o desejo de Deus. A mensagem evangélica não pode limitar-se, portanto, apenas a alguns dos seus aspectos, que, mesmo importantes, sozinhos não manifestam o coração do ensinamento de Jesus.
(Continua...)
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