O mundo
foi surpreendido pela recente notícia
de que, após quase 50 anos, Cuba e os
Estados Unidos da América reatariam os laços.
Dois pontos do acordo chamaram a atenção da mídia: 1. O retorno das chamadas “relações
diplomáticas” incluirão as relações comerciais entre as duas nações e o fim
das sanções aos países que queiram comerciar com a ilha caribenha, o que
implicará, invariavelmente, no fim do embargo ainda mantido pelo Congresso
norte-americano; 2. A participação da
diplomacia do Vaticano, personificada pelo próprio Papa Francisco, tida
como imprescindível pelos líderes Barack Obama e Raúl Castro.
O fato do Vaticano ter intermediado as
conversas entre os dois países não deveria causar estranheza, já que a Santa Sé
sempre foi reconhecida por sua excelência diplomática ao longo dos séculos.
Contudo, em um período em que o mundo vive uma escassez de líderes, a resolução
da celeuma é apontada quase como um milagre operado por Francisco, onde ele
atesta sua linhagem jesuítica ao fazer as vezes de elo entre Obama e o caçula
dos Castro.
A Companhia de Jesus, Ordem religiosa da qual Francisco é
membro, tem uma ligação histórica com a diplomacia entre líderes mundiais. Inúmeros padres jesuítas fizeram parte das cortes europeias,
servindo como confessores e conselheiros de reis, príncipes e poderosos,
exercendo influência determinante, principalmente no século XVII, em momentos
difíceis como a guerra dos 30 anos. Durante o período do conflito, os jesuítas
estavam presentes nas cortes da Áustria, Bavária, França e Espanha. Como é
praxe na Companhia de Jesus, todos os jesuítas em missão mantinham
correspondência com o governo central da Ordem, na figura do Superior-Geral.
Três superiores gerais se destacaram nessa época; Claudio Acquaviva, Muzio
Vitelleschi e Vicenzo Carafa (esse último, parente do Papa Paulo IV) e através
de suas cartas é possível compreender melhor o papel crucial que os religiosos
tiveram nos bastidores da batalha. As cartas revelam que a atuação dos jesuítas resultou na celebração do acordo conhecido como
“A Paz de Praga”, ocorrido em 1635,
e que levou, efetivamente, ao fim da guerra civil durante o conflito.
Trabalhar com o intuito de construir a paz
junto a figuras históricas como o Imperador Ferdinand II, o rei Luís XIII e o
cardeal de Richelieu, não era tarefa simples. As consequências para a Igreja e
para a própria Ordem dos jesuítas sempre eram cautelosamente avaliadas. Certa
vez, o superior-geral Acquaviva fez questão de ressaltar que os jesuítas
confessores deveriam “evitar até mesmo a
aparência de estarem exercendo algum tipo de poder político” nas cortes.
Como podemos perceber, o Papa Francisco
seguiu à risca o protocolo jesuítico ao intermediar as conversas entre os
Estados Unidos e Cuba. E como sumo pontífice, continuou o diálogo entre a Santa
Sé e o regime socialista de Cuba. O diálogo havia sido reaberto pelo Papa João Paulo II quando, em visita ao
país em 1998, não denunciou os crimes praticados pelo governo de Fidel Castro,
mas arrancou dele a restauração do feriado de Natal na ilha. O Papa Bento XVI visitou Cuba em 2012 e,
seguindo a mesma linha diplomática, voltou à Roma após restabelecer a
sexta-feira santa como feriado nacional.
Afinal, o que almeja Francisco? Enquanto pontífice da Igreja e pastor, ele ganhou prestígio internacional ao interceder para a retomada das
relações entre Cuba e os EUA. A unidade do povo e a construção de canais de
diálogo são medidas que se esperam de um líder religioso como o Papa.
Francisco, bom pastor que é, demonstrou que não mede esforços para que o povo
cubano tenha mais liberdade, principalmente liberdade religiosa. Pesquisas
indicam que 60% dos cubanos residentes na ilha são católicos, embora apenas 30%
sejam praticantes. Sem dúvida, assim como ocorreu no leste europeu durante o
período da cortina de ferro imposta pela União Soviética, muitos cubanos “herdaram” seu catolicismo de seus ancestrais.
Apagar traços como a religiosidade popular é prática comum de regimes
totalitários, numa tentativa de acabar com a identidade de um povo ao proibir
suas expressões culturais. Francisco tem consciência disso e esse é mais um
trunfo de sua participação, agora como chefe de Estado do Vaticano: dias após o anúncio de Obama e Castro, o
governo cubano começou a devolver propriedades da Igreja que há muito haviam
sido confiscadas. A restituição mais emblemática talvez tenha sido a da capela da Universidade de Santo Tomás de
Villanueva, em Havana. Construída pelos Agostinianos, ela teve a porta
lacrada com tijolos após ser confiscada por Castro, que ainda expulsou os
padres da ilha em 1961. Contudo, o mais irônico e melancólico, como em uma
metáfora da relação entre o totalitarismo esquerdista e a Igreja, foi a atitude
do regime de Fidel de deixar a capela intacta externamente, mas totalmente
destruída e vandalizada por dentro. Hoje, ao ser devolvida para a Conferência
dos Bispos Católicos de Cuba, pode-se ler pichações como “Tudo isso é culpa da Revolução”, nas paredes do templo. Mais do que
apontar culpados ou reabrir feridas, Francisco está reconstruindo a Igreja em
Cuba, seguindo os passos de seu homônimo de Assis.
Francisco também caminha nos passos do fundador da Companhia de
Jesus, Santo Inácio de Loyola. Este
dizia para seus irmãos missionários que, em alguns casos adversos ao
cristianismo, se fazia necessário “entrar
com a deles para sair com a nossa”. Francisco já deixou claro o que pensa
sobre o marxismo e o socialismo cubano quando teceu duras críticas ao governo
em seu opúsculo "Diálogos entre Juan Pablo II y Fidel Castro" , de 1998. Dentre elas está a
institucionalização de Cuba como estado ateísta, condição que foi alterada na
constituição em 1992, embora a perseguição aos cristãos continue ocorrendo na
ilha, como denunciam vários institutos de defesa dos direitos humanos, como a
organização cristã internacional “Portas Abertas”. Ainda assim, a postura de Francisco não é a de
enfrentamento, mas de diálogo e investida na principal fraqueza do regime
dos Castro: a falência econômica.
Cuba e Estados Unidos têm um longo caminho
a ser percorrido para a reestabilização de suas várias relações. Contudo,
parece claro que o cenário internacional
pressiona Cuba a contar os dias para receber a chuva de dólares americanos
que já se avista no horizonte sobre Key West em direção a Havana. O regime de
Fidel se manteve, aos trancos e barrancos, por conta da ajuda de parceiros
históricos como a extinta União Soviética e, ultimamente, com os petrodólares
russos e venezuelanos. A derrubada do preço do barril do petróleo imposta pela
Arábia Saudita fez, de uma só tacada, Vladimir Putin e Nicolás Maduro não
poderem mais ajudar seus protegidos caribenhos. Portanto, a contagem regressiva
para convulsão social em Cuba já havia sido disparada. Obama sabe, como fez
questão de explicitar em seu discurso, que a melhor propaganda pró-americana (e
antissocialista) é deixar que cubanos residentes nos EUA visitem suas famílias
na ilha. A tática é deixar que as máquinas de cartão de crédito funcionem, que
as remessas de dinheiro aumentem, que os cubanos comecem a especulação
imobiliária e que a população da ilha tenha acesso a todos os produtos (e
sonhos de consumo) que o mundo inteiro, principalmente os norte-americanos, tem
à disposição. Por isso, uma das cláusulas essenciais do acordo entre Barack e
Raúl é a construção de uma rede de acesso à internet, para que os cubanos façam
a simples comparação entre aquilo que possuem na ilha atualmente e como o mundo
vive. A tática não é nova: ela foi usada, ainda que clandestinamente, na
Alemanha dividida pelo muro. O muro de Berlim não caiu por consciência
política, ideologia ou coisa que o valha. O
muro caiu porque os alemães orientais queriam vestir calça Lee e beber Coca-Cola,
como seus vizinhos ocidentais.
Francisco também sabe que, com liberdade -
de expressão, política e religiosa - o povo cubano pode dar muito fruto e até
mesmo ser modelo no seguimento de Jesus Cristo. Foi assim com os mártires
japoneses, coreanos, russos, dentre outros. Francisco está semeando em terreno fértil, aquele que, retirando-se
os espinhos e espantando os pássaros devoradores, faz as sementes crescerem e
darem frutos muito mais rápido do que se imagina.
Oxalá, o Papa Bergoglio possa saborear Cuba, enfim, libre...
Muito bom!
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