Há alguns meses, reunimo-nos em Roma e não esqueço aquele nosso primeiro
encontro. Alegra-me vê-vos de novo aqui, debatendo os melhores caminhos para
superar as graves situações de injustiça que padecem os excluídos em todo o
mundo. Obrigado Senhor Presidente Evo Morales, por
sustentar tão decididamente este Encontro.
Então, em Roma, senti algo muito belo: fraternidade, paixão, entrega,
sede de justiça. Hoje, em Santa Cruz de la Sierra, volto a
sentir o mesmo. Obrigado! São muitos na Igreja aqueles que se sentem mais
próximos dos movimentos populares. Muito
me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vós, que se
envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada diocese, em cada comissão
«Justiça e Paz», uma colaboração real,
permanente e comprometida com os movimentos populares. Convido-vos a todos,
bispos, sacerdotes e leigos, juntamente com as organizações sociais das
periferias urbanas e rurais a aprofundar este encontro.
Deus escuta o clamor do seu povo e
também eu quero voltar a unir a minha voz à vossa: terra, teto e trabalho para todos os nossos irmãos e irmãs. São direitos sagrados.
Vale a pena, vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos seja
escutado na América Latina e em toda a terra.
1. Comecemos por reconhecer que precisamos duma mudança. Proponho que nos
coloquemos estas perguntas:
- Reconhecemos que as coisas não andam bem num mundo onde
há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores
sem direitos, tantas pessoas feridas na sua dignidade?
- Reconhecemos que as coisas não andam bem, quando
explodem tantas guerras sem sentido e a violência fratricida se apodera até dos
nossos bairros? Reconhecemos que as
coisas não andam bem, quando o solo, a água, o ar e todos os seres da
criação estão sob ameaça constante?
Então digamo-lo sem medo: Precisamos e
queremos uma mudança!
Nas vossas cartas e
nos nossos encontros, relataram-me as múltiplas exclusões e injustiças que
sofrem em cada atividade laboral, em cada bairro, em cada território. São
tantas e tão variadas como muitas e diferentes são as formas próprias de as enfrentar.
Mas há um elo invisível que une cada uma destas exclusões: conseguimos nós
reconhecê-lo? É que não se trata de
questões isoladas.
Pergunto-me se
somos capazes de reconhecer que estas
realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global.
Reconhecemos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem
pensar na exclusão social nem na destruição da natureza?
Se é assim – insisto – digamo-lo sem
medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam
os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades,
não o suportam os povos... E nem sequer o suporta a Terra, a irmã Mãe
Terra, como dizia São Francisco.
Queremos uma mudança nas nossas vidas,
nos nossos bairros, no vilarejo, na nossa realidade mais próxima; mas uma
mudança que toque também o mundo inteiro, porque hoje a interdependência global
requer respostas globais para os problemas locais. A globalização da
esperança, que nasce dos povos e cresce entre os pobres, deve substituir esta
globalização da exclusão e da indiferença.
Hoje quero refletir
convosco sobre a mudança que queremos e
precisamos. Como sabem, recentemente escrevi sobre os problemas da mudança
climática. Mas, desta vez, quero falar duma mudança noutro sentido. Uma mudança
positiva, uma mudança que nos faça bem, uma mudança – poderíamos dizer –
redentora. Porque é dela que precisamos. Sei que buscais uma mudança e não
apenas vós: nos diferentes encontros, nas várias viagens, verifiquei que há uma
expectativa, uma busca forte, um anseio de mudança em todos os povos do mundo.
Mesmo dentro da minoria cada vez mais reduzida que pensa sair beneficiada deste
sistema, reina a insatisfação e sobre tudo a tristeza. Muitos esperam uma mudança que os liberte desta tristeza individualista
que escraviza.
O tempo, irmãos e irmãs, o tempo parece exaurir-se; já não nos
contentamos com lutar entre nós, mas chegamos até a assanhar-nos contra a nossa
casa. Hoje, a comunidade científica aceita aquilo que os pobres já há muito
denunciam: estão a produzir-se danos talvez irreversíveis no ecossistema.
Está-se a castigar a terra, os povos
e as pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta
morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava «o esterco do diabo»: reina a ambição desenfreada de dinheiro.
O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um
ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina
todo o sistema sócioecónomico, arruína a sociedade, condena o homem,
transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo
contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum.
Não quero alongar-me na descrição dos
efeitos malignos desta ditadura subtil: vós
conhecei-los! Mas também não basta assinalar as causas estruturais do drama
social e ambiental contemporâneo. Sofremos de um certo excesso de diagnóstico,
que às vezes nos leva a um pessimismo charlatão ou a rejubilar com o negativo.
Ao ver a crónica negra de cada dia, pensamos que não haja nada que se possa
fazer para além de cuidar de nós mesmos e do pequeno círculo da família e dos
amigos.
Que posso fazer eu,
recolhedor de papelão, catador de lixo, limpador, reciclador, frente a tantos
problemas, se mal ganho para comer? Que posso fazer eu, artesão, vendedor
ambulante, carregador, trabalhador irregular, se não tenho sequer direitos
laborais? Que posso fazer eu, camponesa, indígena, pescador que dificilmente
consigo resistir à propagação das grandes corporações? Que posso fazer eu, a
partir da minha comunidade, do meu barraco, da minha povoação, da minha favela,
quando sou diariamente discriminado e marginalizado? Que pode fazer aquele
estudante, aquele jovem, aquele militante, aquele missionário que atravessa as
favelas e os paradeiros com o coração cheio de sonhos, mas quase sem nenhuma
solução para os meus problemas? Muito! Podem fazer muito.
Vós, os mais humildes, os explorados,
os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro
da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de
vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 T”
(trabalho, teto, terra), e
também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de
mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!
2. Vós sois semeadores de mudança.
Aqui, na Bolívia, ouvi uma frase de que gosto muito: «processo de mudança». A mudança concebida, não como
algo que um dia chegará porque se impôs esta ou aquela opção política ou porque
se estabeleceu esta ou aquela estrutura social.
Sabemos,
amargamente, que uma mudança de estruturas, que não seja acompanhada por uma
conversão sincera das atitudes e do coração, acaba a longo ou curto prazo por
burocratizar-se, corromper-se e sucumbir. Por isso gosto tanto da imagem do
processo, onde a paixão por semear, por regar serenamente o que outros verão
florescer, substitui a ansiedade de ocupar todos os espaços de poder
disponíveis e de ver resultados imediatos. Cada um de nós é apenas uma parte de
um todo complexo e diversificado interagindo no tempo: povos que lutam por uma
afirmação, por um destino, por viver com dignidade, por «viver bem».
Vós, a partir dos movimentos
populares, assumis as tarefas comuns motivados pelo amor fraterno, que se
rebela contra a injustiça social. Quando olhamos o rosto dos que sofrem, o
rosto do camponês ameaçado, do trabalhador excluído, do indígena oprimido, da
família sem tecto, do imigrante perseguido, do jovem desempregado, da criança
explorada, da mãe que perdeu o seu filho num tiroteio porque o bairro foi
tomado pelo narcotráfico, do pai que perdeu a sua filha porque foi sujeita à
escravidão; quando recordamos estes «rostos e nomes» estremecem-nos as
entranhas diante de tanto sofrimento e comovemo-nos…. Porque «vimos e ouvimos», não a fria estatística, mas as feridas
da humanidade dolorida, as nossas feridas, a nossa carne. Isto é muito
diferente da teorização abstrata ou da indignação elegante. Isto
comove-nos, move-nos e procuramos o outro para nos movermos juntos. Esta emoção
feita acção comunitária é incompreensível apenas com a razão: tem um plus de
sentido que só os povos entendem e que confere a sua mística particular aos
verdadeiros movimentos populares.
Vós viveis, cada
dia, imersos na crueza da tormenta humana. Falastes-me das vossas causas,
partilhastes comigo as vossas lutas. E agradeço-vos. Queridos irmãos, muitas
vezes trabalhais no insignificante, no que aparece ao vosso alcance, na
realidade injusta que vos foi imposta e a que não vos resignais opondo uma
resistência ativa ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata.
Vi-vos trabalhar incansavelmente pela
terra e a agricultura camponesa, pelos vossos territórios e comunidades, pela
dignificação da economia popular, pela integração urbana das vossas favelas e
agrupamentos, pela auto-construção de moradias e o desenvolvimento das
infra-estruturas do bairro e em muitas actividades comunitárias que tendem à
reafirmação de algo tão elementar e inegavelmente necessário como o direito aos
“3 Ts”: terra, teto e trabalho.
Este apego ao bairro, à terra, ao
território, à profissão, à corporação, este reconhecer-se no rosto do outro,
esta proximidade no dia-a-dia, com as suas misérias e os seus heroísmos
quotidianos, é o que permite realizar o mandamento do amor, não a partir de
ideias ou conceitos, mas a partir do genuíno encontro entre pessoas, porque não
se amam os conceitos nem as ideias; amam-se as pessoas. A entrega, a verdadeira
entrega nasce do amor pelos homens e mulheres, crianças e idosos, vilarejos e
comunidades... Rostos e nomes que enchem o coração. A partir destas sementes
de esperança semeadas pacientemente nas periferias esquecidas
do planeta, destes rebentos de ternura que lutam por subsistir na escuridão da
exclusão, crescerão grandes árvores, surgirão bosques densos de esperança para
oxigenar este mundo.
Vejo, com alegria,
que trabalhais no que aparece ao vosso alcance, cuidando dos rebentos; mas, ao
mesmo tempo, com uma perspectiva mais ampla, protegendo o arvoredo. Trabalhais
numa perspectiva que não só aborda a realidade setorial que cada um de vós
representa e na qual felizmente está enraizada, mas procurais também resolver,
na sua raiz, os problemas gerais de pobreza, desigualdade e exclusão.
Felicito-vos por
isso. É imprescindível que, a par da reivindicação dos seus legítimos direitos,
os povos e as suas organizações sociais construam
uma alternativa humana à globalização exclusiva. Vós sois semeadores de
mudança. Que Deus vos dê coragem, alegria, perseverança e paixão para continuar
a semear. Podeis ter a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, vamos ver os
frutos.
Peço aos
dirigentes: sede criativos e nunca percais o apego às coisas próximas, porque o
pai da mentira sabe usurpar palavras nobres, promover modas intelectuais e
adoptar posições ideológicas, mas se construirdes sobre bases sólidas, sobre as
necessidades reais e a experiência viva dos vossos irmãos, dos camponeses e indígenas,
dos trabalhadores excluídos e famílias marginalizadas, de certeza não vos
equivocareis.
A Igreja não pode nem deve ser alheia a este
processo no anúncio do Evangelho. Muitos sacerdotes e agentes
pastorais realizam uma tarefa imensa acompanhando e promovendo os excluídos em
todo o mundo, ao lado de cooperativas, dando impulso a empreendimentos,
construindo casas, trabalhando abnegadamente nas áreas da saúde, desporto e
educação. Estou convencido de que a
cooperação amistosa com os movimentos populares pode robustecer estes esforços
e fortalecer os processos de mudança.
No coração, tenhamos sempre a Virgem
Maria, uma jovem humilde duma pequena aldeia perdida na periferia dum grande
império, uma mãe sem teto que soube transformar um curral de animais na casa de
Jesus com uns pobres paninhos e uma montanha de ternura.
Maria é sinal de esperança para os povos que sofrem dores de parto até que
brote a justiça. Rezo à Virgem do Carmo, padroeira da Bolívia, para fazer com
que este nosso Encontro seja fermento de mudança.
3. Por último, gostaria que
refletíssemos, juntos, sobre algumas
tarefas importantes neste momento histórico, pois queremos uma mudança
positiva em benefício de todos os nossos irmãos e irmãs. Disto estamos certos!
Queremos uma mudança que se enriqueça com o trabalho conjunto de governos,
movimentos populares e outras forças sociais. Sabemos isto também! Mas não é
tão fácil definir o conteúdo da mudança, ou seja, o programa social que reflita
este projeto de fraternidade e justiça que esperamos. Neste sentido, não esperem uma receita deste Papa. Nem o Papa nem a Igreja têm o
monopólio da interpretação da realidade social e da proposta de soluções para
os problemas contemporâneos. Atrever-me-ia a dizer que não existe
uma receita. A história é construída pelas gerações que se vão sucedendo no
horizonte de povos que avançam individuando o próprio caminho e respeitando os
valores que Deus colocou no coração.
Gostaria, no
entanto, de vos propor três grandes
tarefas que requerem a decisiva contribuição do conjunto dos movimentos
populares:
3.1 A primeira tarefa é pôr a economia
ao serviço dos povos.
Os seres humanos e a natureza não
devem estar ao serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de
exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia
mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra.
A economia não deveria ser um
mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa comum. Isto
implica cuidar zelosamente da casa e distribuir adequadamente os bens entre
todos. A sua finalidade não é unicamente garantir o alimento ou um «decoroso
sustento». Não é sequer, embora fosse já um grande passo, garantir o acesso aos “3T” pelos quais combateis. Uma economia verdadeiramente
comunitária – poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração
cristã – deve garantir aos povos dignidade, «prosperidade e civilização em seus
múltiplos aspectos».(1)
Isto envolve os “3T” mas também acesso à educação, à saúde, à inovação,
às manifestações artísticas e culturais, à comunicação, ao desporto e à
recreação. Uma economia justa deve criar
as condições para que cada pessoa possa gozar duma infância sem privações,
desenvolver os seus talentos durante a juventude, trabalhar com plenos direitos
durante os anos de atividade e ter acesso a uma digna aposentação na velhice.
É uma economia onde o ser humano, em harmonia com a natureza, estrutura todo o
sistema de produção e distribuição de tal modo que as capacidades e
necessidades de cada um encontrem um apoio adequado no ser social. Vós – e
outros povos também – resumis este anseio duma maneira simples e bela: «viver bem».
Esta economia é não
apenas desejável e necessária, mas também possível. Não é uma utopia, nem uma
fantasia. É uma perspectiva extremamente realista. Podemos consegui-la. Os
recursos disponíveis no mundo, fruto do trabalho intergeneracional dos povos e
dos dons da criação, são mais que suficientes para o desenvolvimento integral
de «todos os homens e do homem todo». (2)
Mas o problema é
outro. Existe um sistema com outros objetivos. Um sistema que, apesar de
acelerar irresponsavelmente os ritmos da produção, apesar de implementar
métodos na indústria e na agricultura que sacrificam a Mãe Terra na ara da
«produtividade», continua a negar a milhares de milhões de irmãos os mais
elementares direitos econômicos, sociais e culturais. Este sistema atenta
contra o projecto de Jesus.
A justa distribuição dos frutos da
terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É um dever moral. Para os
cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence.
O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da
Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade,
sobretudo quando afecta os recursos naturais, deve estar sempre em função das
necessidades das pessoas. E estas necessidades não se limitam ao consumo. Não
basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si
só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem a
certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias.
Nunca poderão substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho
digno, livre, criativo, participativo e solidário.
Neste caminho, os movimentos
populares têm um papel essencial, não apenas exigindo e reclamando, mas fundamentalmente
criando. Vós sois poetas sociais: criadores de trabalho, construtores
de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado
global.
Conheci de perto várias experiências,
onde os trabalhadores, unidos em cooperativas e outras formas de organização
comunitária, conseguiram criar trabalho onde só havia sobras da economia idólatra. As empresas recuperadas, as
feiras francas e as cooperativas de catadores de papelão são exemplos desta
economia popular que surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e
paciência, adopta formas solidárias que a dignificam. Quão diferente é isto do
fato de os descartados pelo mercado formal serem explorados como escravos!
Os governos que
assumem como própria a tarefa de colocar a economia ao serviço das pessoas
devem promover o fortalecimento, melhoria, coordenação e expansão destas formas
de economia popular e produção comunitária. Isto implica melhorar os processos
de trabalho, prover de adequadas infra-estruturas e garantir plenos direitos
aos trabalhadores deste setor alternativo.
Quando Estado e organizações sociais
assumem, juntos, a missão dos “3T”, ativam-se os
princípios de solidariedade e subsidiariedade que permitem construir o bem
comum numa democracia plena e participativa.
3.2 A segunda tarefa é unir os nossos
povos no caminho da paz e da justiça.
Os povos do mundo
querem ser artífices do seu próprio destino. Querem caminhar em paz para a
justiça. Não querem tutelas nem interferências, onde o mais forte subordina o
mais fraco. Querem que a sua cultura, o seu idioma, os seus processos sociais e
tradições religiosas sejam respeitados. Nenhum poder efetivamente constituído
tem direito de privar os países pobres do pleno exercício da sua soberania e,
quando o fazem, vemos novas formas de colonialismo que afetam seriamente as
possibilidades de paz e justiça, porque «a paz funda-se não só no respeito
pelos direitos do homem, mas também no respeito pelo direito dos povos,
sobretudo o direito à independência». (3)
Os povos da América
Latina alcançaram, com um parto doloroso, a sua independência política e, desde
então, viveram já quase dois séculos duma história dramática e cheia de
contradições procurando conquistar uma independência plena.
Nos últimos anos, depois de tantos
mal-entendidos, muitos países
latino-americanos viram crescer a fraternidade entre os seus povos. Os
governos da região juntaram seus esforços para fazer respeitar a sua soberania,
a de cada país e a da região como um todo que, de forma muito bela como faziam
os nossos antepassados, chamam a «Pátria Grande».
Peço-vos, irmãos e irmãs dos movimentos populares, que cuidem e façam crescer
esta unidade. É necessário manter a unidade contra toda a tentativa de divisão,
para que a região cresça em paz e justiça.
Apesar destes avanços, ainda
subsistem fatores que atentam contra este desenvolvimento humano equitativo e
coarctam a soberania dos países da «Pátria Grande» e
doutras latitudes do Planeta. O novo colonialismo assume
variadas fisionomias. Às vezes, é o poder anônimo do ídolo dinheiro:
corporações, credores, alguns tratados denominados «de livre comércio» e a
imposição de medidas de «austeridade» que sempre apertam o cinto dos
trabalhadores e dos pobres.
Os bispos latino-americanos
denunciam-no muito claramente, no documento de Aparecida,
quando afirmam que «as instituições
financeiras e as empresas transnacionais se fortalecem ao ponto de subordinar
as economias locais, sobretudo debilitando os Estados, que aparecem cada vez
mais impotentes para levar adiante projetos de desenvolvimento a serviço de
suas populações». (4)
Noutras ocasiões,
sob o nobre disfarce da luta contra a corrupção, o narcotráfico ou o terrorismo
– graves males dos nossos tempos que requerem uma acção internacional
coordenada – vemos que se impõem aos Estados medidas que pouco têm a ver com a
resolução de tais problemáticas e muitas vezes tornam as coisas piores.
Da mesma forma, a concentração
monopolista dos meios de comunicação social que pretende impor padrões
alienantes de consumo e certa uniformidade cultural é outra das formas que
adopta o novo colonialismo. É o colonialismo ideológico. Como dizem os bispos
da África, muitas vezes pretende-se converter os países
pobres em «peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigante».5
Temos de reconhecer
que nenhum dos graves problemas da humanidade pode ser resolvido sem a interação
dos Estados e dos povos a nível internacional. Qualquer acto de envergadura
realizado numa parte do Planeta repercute-se no todo em termos econômicos,
ecológicos, sociais e culturais.
Até o crime e a
violência se globalizaram. Por isso, nenhum
governo pode atuar à margem duma responsabilidade comum. Se queremos
realmente uma mudança positiva, temos de assumir
humildemente a nossa interdependência. Mas interação não é sinónimo de
imposição, não é subordinação de uns em função dos interesses dos outros. ]
O colonialismo, novo e
velho, que reduz os países pobres a meros fornecedores de matérias-primas e mão
de obra barata, gera violência, miséria, emigrações forçadas e todos os males
que vêm juntos... precisamente porque, ao pôr a periferia em função do centro,
nega-lhes o direito a um desenvolvimento integral. Isto é desigualdade, e a
desigualdade gera violência que nenhum recurso policial, militar ou dos
serviços secretos será capaz de deter.
Digamos NÃO às velhas e novas formas de
colonialismo. Digamos SIM ao encontro entre povos e culturas. Bem-aventurados
os que trabalham pela paz.
Aqui quero deter-me num tema
importante. É que alguém poderá, com direito, dizer: «Quando o Papa fala de colonialismo, esquece-se de certas ações da
Igreja». Com pesar, vo-lo digo: Cometeram-se
muitos e graves pecados contra os povos nativos da América, em nome de Deus.
Reconheceram-no os meus antecessores, afirmou-o o CELAM e quero reafirmá-lo eu também.
Como São João Paulo II, peço que a Igreja «se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão
para os pecados passados e presentes dos seus filhos». (6) E eu
quero dizer-vos, quero ser muito claro, como foi São João
Paulo II: Peço humildemente perdão, não só para as ofensas da própria
Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada
conquista da América
.
Peço-vos também a todos, crentes e
não crentes, que se recordem de tantos bispos, sacerdotes e leigos que pregaram
e pregam a boa nova de Jesus com coragem e mansidão, respeito e em paz; que, na
sua passagem por esta vida, deixaram impressionantes obras de promoção humana e
de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos indígenas ou acompanhando os
próprios movimentos populares mesmo até ao martírio. A Igreja, os seus filhos e
filhas, fazem parte da identidade dos povos na América Latina. Identidade que
alguns poderes, tanto aqui como noutros países, se empenham por apagar, talvez
porque a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania
do ídolo dinheiro.
Hoje vemos, com horror, como no Médio Oriente e noutros lugares do mundo se
persegue, tortura, assassina a muitos irmãos nossos pela sua fé em Jesus. Isto
também devemos denunciá-lo: dentro desta terceira guerra mundial em parcelas
que vivemos, há uma espécie de genocídio em curso que deve cessar.
Aos irmãos e irmãs
do movimento indígena latino-americano, deixem-me expressar a minha mais
profunda estima e felicitá-los por procurarem a conjugação dos seus povos e
culturas segundo uma forma de convivência, a que eu chamo poliédrica, onde as
partes conservam a sua identidade construindo, juntas, uma pluralidade que não
atenta contra a unidade, mas fortalece-a. A sua procura desta
interculturalidade que conjuga a reafirmação dos direitos dos povos nativos com
o respeito à integridade territorial dos Estados enriquece-nos e fortalece-nos
a todos.
3.3 A terceira tarefa, e talvez a mais
importante que devemos assumir hoje, é defender a Mãe Terra.
A casa comum de todos nós está a ser
saqueada, devastada, vexada impunemente. A covardia em defendê-la é um pecado
grave. Vemos, com crescente decepção, sucederem-se uma após outra
cimeiras internacionais sem qualquer resultado importante. Existe um claro,
definitivo e inadiável imperativo ético de atuar que não está a ser cumprido.
Não se pode permitir que certos interesses – que são globais, mas não
universais – se imponham, submetendo Estados e organismos internacionais, e
continuem a destruir a criação. Os povos e os seus movimentos são chamados a
clamar, mobilizar-se, exigir – pacífica mas tenazmente – a adopção urgente de
medidas apropriadas. Peço-vos, em nome de Deus, que defendais a Mãe Terra.
Sobre este assunto, expressei-me devidamente na carta encíclica Laudato si’.
4. Para concluir, quero dizer-lhes
novamente: O futuro da humanidade não está unicamente nas
mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está
fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e
também nas suas mãos que regem, com humildade e convicção, este processo de
mudança.
Estou convosco. Digamos juntos do fundo do coração: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador
sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma
criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma
veneranda velhice. Continuai com a vossa luta e,
por favor, cuidai bem da Mãe Terra.
Rezo por vós, rezo
convosco e quero pedir a nosso Pai Deus que vos acompanhe e abençoe, que vos
cumule do seu amor e defenda no caminho concedendo-vos, em abundância, aquela
força que nos mantém de pé: esta força é a esperança, a esperança que não
decepciona.
Obrigado! E peço-vos, por favor, que rezeis por mim.
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