A CULTURA DO ESTUPRO DESCANSA SOB A SOMBRA DA NOSSA LEITURA BÍBLICA... (por Ronilso Pacheco)




A CULTURA DO ESTUPRO está presente quando a gente passa por um texto que fala do estupro coletivo covarde de uma jovem, entregue a tantos homens, pelo seu próprio pai, e não torna isso um ponto de partida para discutir a fragilidade e condição vulnerável da mulher na nossa tradição judaico-cristã (Juízes 19, 24-29).

A CULTURA DO ESTUPRO está presente quando a gente consegue ignorar a história de uma mulher como Agar, negra, escrava de Sara e de Abraão, que é não só violentada pelo patrão, a pedido de sua patroa, como é expulsa por Sara, com o pequeno Ismael nos braços, por causa do ciúme desta que é nossa matriarca da fé cristã, ao lado de Abraão, pai da fé. Somente Deus intervém por ela. Nós invisibilizamos a sua história, porque a de Sara e sua família perfeita é mais importante (Gênesis capítulos 16 e 25).
A CULTURA DO ESTUPRO se manifesta quando a gente continua exaltando Davi como homem segundo o coração de Deus e menospreza o fato dele ter coisificado, sexualizado, objetificado uma mulher, Betsabeia, companheira de um soldado seu, à ponto de armar para este homem uma armadilha de morte, para ele, como rei, ficar com essa mulher. A mulher coagida por um homem do poder, seduzida e abusada (2Samuel 11, 2-3).

A CULTURA DO ESTUPRO É QUANDO a gente continua lendo o livro de Oséias com essa mesma ilustração machista e medíocre, em que Oséias, homem, é o sujeito honesto e puro, que se relaciona com Gomer, mulher, prostituta, que serve para ilustrar a infidelidade do povo de Israel. A gente não entende que o que se contrapõe a Deus não é a vida de Gomer, mas a condição a que ela chega, fruto do contexto social conduzido pelo próprio estado e a religião, que juntos, usam a prostituição. O Estado usava as festas religiosas para tal (livro de Oséias).

A CULTURA DO ESTUPRO está quando a gente continua culpabilizando a mulher no capítulo 8 do Evangelho de João, assumindo a fala de sua acusação de adultério, mesmo o texto mostrando o machismo violento e arrogante dos homens, velhos e jovens, que a trouxeram para cumprirem com satisfação a lei que os livravam de qualquer responsabilidade de violação contra as mulheres, mas puniam esta por qualquer reivindicação de decisão sobre o corpo (João 8,1-11).

A CULTURA DO ESTUPRO ESTÁ NO ARCABOUÇO dessa leitura que não nos choca, e não nos serve de nenhuma ilustração, o fato do grande sacerdote Esdras, ter proposto como solução para recuperação da fidelidade do povo de Israel a Deus, a expulsão de TODAS as mulheres estrangeiras junto com os seus filhos, para purificar o povo. Matrimônios desfeitos, mulheres largadas solitariamente para fora do território, para que o povo (na verdade os homens) fossem purificados. Coisa que Hitler fez, e achamos um absurdo (Esdras capítulos 9 e 10).

A CULTURA DO ESTUPRO DESCANSA SOB A SOMBRA da interpretação em que continuamos nos digladiando discutindo o protagonismo das mulheres na Igreja. Homens decidindo se elas devem ou não ter, devem ou não falar, etc. E continuamos com essa medíocre subalternidade da mulher justificada, de maneira não só machista mas também prepotente, pela leitura arcaica das palavras de Paulo (algumas duvidosamente atribuídas a ele) como em Coríntios (1Coríntios 14, 33-35).

SÓ A CULTURA DO ESTUPRO justifica a gente não problematizar nos nossos sermões, situações como a vivida por Tamar, jovem não apenas abusada, violentada, sem direito sobre o próprio corpo, como impedida até de partilhar do prazer e do gozo da relação que tinha (Gênesis 38).

É VIOLÊNCIA ATRÁS DE VIOLÊNCIA. Silenciamento atrás de silenciamento. Marginalização atrás de marginalização. Mas a gente não vai ficar procurando isso na Bíblia. A gente não vai aceitar que digam que a Bíblia é lida sob a lente da mesma cultura machista e legitimadora do estupro diário sofrido por tantas mulheres e adolescentes. As histórias estão ali, mas a gente não aprendeu a discutir nada, a gente não pergunta. Mas afinal, são só mulheres. Nós vamos continuar passando por cima das violências por elas sofridas, e dizendo amém, mesmo que nossa hermenêutica machista contribua sutilmente para o arcabouço desta cultura. A cultura do estupro. É forte, mas é isso.


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8 comentários:

  1. Sem querer justificar, mas na cultura muçulmana é muito pior...

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    1. Se é pior, só significa que cabe a todos nós uma reflexão ainda maior nesse sentido.

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  2. Na verdade aproveitou-se de tal situação para atacar a Igreja, ou a tradição mais uma vez. Vale aqui deixar algumas verdades.
    1) A culpa é sempre de quem abusa e a pessoa deve pagar por isso, tanto a lei humana como a lei de Deus são claras quanto a isso.
    2) A Igreja é a única instituição que fala e sempre falou contra a objetificação da mulher por meio da boa nova e da conversão.
    3) A Igreja tem como mãe Nossa Senhora, escolhida por Deus na eternidade, inúmeras santas nos altares e na devoção popular.
    4) A "cultura" do estupro se posiciona justamente contra os valores cristãos, seja em determinadas artes, danças, novelas, músicas e inúmeras outras formas.
    5) Falar disso é um tema complexo e os grupos ideológicas abordam-no de forma equivocada, com fins alheios, bem ou mal intencionados...

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  3. É hora de relermos estas histórias à luz também de como Jesus resgata a dignidade das mulheres.

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  4. Donde se lê "cultura do estupro", leia-se "marxismo cultural". Será que o autor engrossa o coro do Deputado Jean Wyllys para pedir a exclusão de trechos preconceituosos da Bíblia? De politicamente correto em politicamente correto, eis que nossa sociedade anda para trás a passos largos!

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  5. Excelente artigo. Nunca ouvi uma referência sequer sobre essas mulheres exploradas. E, pelos comentários acima, percebe-se que para muitos isso deve continuar assim. É como se ao falar sobre elas, diminuíssemos a Igreja, o evangelho. Faço uma obervação. O mandamento: Não cobiçar a mulher do próximo, quando foi escrito era: Não cobiçar o terreno, o boi e a mulher do próximo, ou seja, a mulher como o terreno e o boi,é propriedade do homem. Obrigada ao homem que escreveu e ao homem que partilhou esse artigo aqui.

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  6. Creio que o texto levanta a questão do machismo presente na cultura e prática do povo de Israel e que se reflete também no texto bíblico. Porém, me parece inadequado simplificar tudo como cultura do estupro. Até mesmo porque o estupro acontece quando não há consentimento da parte da mulher. Os textos não esclarecem isso, penso que o que sim é evidente é a mentalidade machista de objetização da mulher. O autor esqueceu de citar a história de Susana, que é um sinal evidente do cuidado e proteção de Deus e de vitória da mulher sobre este mal.

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