As coisas jogadas fora têm grande importância...
Este assunto é muito importante devido ao grande número de pessoas separadas e divorciadas. Este número também é grande entre cristãos católicos, muitos dos quais têm formação e princípios cristãos, prática religiosa e um ardente desejo de participar dos sacramentos.
Sobre este tema há muitas publicações de teólogos,
pastores, especialistas em Direito Canônico e, sobretudo, pronunciamentos do
Papa e dos bispos. O assunto é controvertido e não pretendemos resolvê-lo, mas
mostrar como se coloca a questão e dar elementos para o discernimento
dos católicos envolvidos nessa situação.
Desde o princípio a Escritura afirma o valor da união
conjugal e da família. No relato da criação da humanidade se lê que Deus fez o
homem à sua imagem e semelhança, o fez homem e mulher, e lhes disse:'crescei-vos
e multiplicai-vos; enchei a terra...' (Gn 1,26-28). Da união do homem e
da mulher se diz: 'serão os dois uma só carne' (Gn 2,24).
O matrimônio é santificado e a sua fecundidade é
uma bênção divina. Ele se
torna símbolo do amor de Deus pelo seu povo eleito, Israel. A relação de Deus
com Israel é compreendida como uma aliança, e a sua representação é o
matrimônio. Israel é a esposa de Javé (Is 62, 4-5). Por
conseguinte, o culto aos deuses estrangeiros é infidelidade à aliança e adultério (Ez
16; Os 2).
Entretanto, o problema do divórcio surgiu. Se
depois do casamento, a mulher não mais encontra 'graça aos olhos do
marido', ele podia despedi-la de casa, fazendo uma ata de
divórcio (Dt 24,1). Daí em diante, ele podia se casar novamente, e ela
também. Somente o marido podia tomar a iniciativa. A sociedade era patriarcal.
Uma questão ficava pendente: o que é
exatamente 'não encontrar graça aos olhos do marido'? Os
rabinos se dividiam na interpretação da Torá (lei de Moisés). Esta
discussão era bastante viva no tempo de Jesus. Alguns rabinos (escola de
Shammai) restringiam a cláusula ao adultério somente. Outros (escola de
Hillel) expandiam a cláusula aos motivos mais fúteis (se a mulher deixasse de
ser bela, tivesse deixado queimar a comida, tivesse verrugas ou mau hálito...)
O divórcio fragilizava muito a mulher, pois a sociedade era masculina, e ela
dependia do homem. A mulher despedida pelo homem estava exposta à miséria,
à mendicância e à prostituição. Tal era a situação das viúvas, que por não
terem marido, tinham dificuldade de sobreviver, pois não havia pensão do
Estado. Na pregação social dos profetas se defendia o órfão, o estrangeiro
e a viúva, porque eram os grupos sociais mais fragilizados, mais expostos à
miséria e à opressão.
Estes dados são importantes para entendermos o
contexto que Jesus encontrou, o problema com o qual se deparou, e o alcance do
seu ensinamento. A palavra de Jesus não é descontextualizada nem
a-histórica. Ele não paira sobre a história, mas se insere nela e
anuncia o Reino de Deus.
O Novo Testamento (NT) nos apresenta Jesus como
plenitude da revelação divina e cumprimento das promessas feitas à Israel. Ele é o Messias, o Senhor, o caminho definitivo da
salvação. Ele é o critério definitivo de compreensão da Torá (lei)
e dos profetas. Ele é o Senhor da criação e o Senhor da história. Entretanto a
sua manifestação se faz dentro da história e tem suas marcas.
A moral de Cristo está alicerçada no amor ao próximo,
critério de toda a lei e da relação com Deus: 'nisto conhecerão que são meus discípulos
que vos ameis uns aos outros' (Jo 13,35). Todos os mandamentos se
resumem neste: amar ao próximo como a si mesmo. 'Quem ama o próximo
cumpriu a lei' (Rm 13,8-10). Os outros mandamentos só tem valor
se forem uma mediação deste amor. Se não, não tem valor para o cristão. A
Lei foi feita para o homem e não o homem para a Lei (Mc 2,27-28). Ela não
é um capricho divino para oprimir o homem, mas um caminho para salvá-lo e
dignificá-lo.
O NT santifica o matrimônio, seguindo a linha do
Antigo. O matrimônio é sinal do
amor de Cristo pela Igreja (Ef 5), da união do Senhor e do novo Israel. A
novidade de Jesus é a afirmação da indissolubilidade do matrimônio e
uma proibição categórica do divórcio (Mt 19,1-12; Mc 10,1-12; Lc 16,18; Rm
7,2-3; 1Cor 7,10-11). A sua referência principal é justamente o relato da
criação, onde se diz que o homem e a mulher se unem e se tornam "uma só
carne". E o que Deus uniu, o homem não deve separar.
Os textos citados têm uma convergência que mostra
um ensinamento inequívoco do Senhor e também a prática da Igreja
primitiva, dos primeiros cristãos. Os textos do NT são memória de Jesus e ao
mesmo tempo catequese da comunidade, que reflete a sua compreensão e a sua prática.
Sobre o divórcio, há duas exceções no NT:
uma está no Evangelho de Mateus (5,32; 19,9) e outra em Paulo (1Cor 7,12-16).
Em Mateus está dito: "todo aquele que repudiar a sua mulher, exceto por
motivo de fornicação, e desposar uma outra, comete adultério". Isto
revela a interpretação de Mateus e sua comunidade sobre o ensinamento de
Jesus. O matrimônio é indissolúvel, sim. Ele realiza a vontade do
Criador. No entanto, ele também é santo. E o adultério e o comportamento
gravemente imoral quebram a santidade e a unidade do matrimônio. Marido e
mulher estão unidos para sempre, mas somente no amor e na fidelidade. Quando
uma parte escolhe o caminho da infidelidade, a outra pode e deve separar-se.
Na verdade, Mateus atenua o radicalismo de
Jesus. Isto pode ser visto também em outra passagem, no Evangelho de Lucas,
onde Jesus diz: 'Se alguém vem a mim, mas não odeia pai e mãe, mulher e
filhos, irmãos e irmãs, e até a si mesmo, não pode ser meu discípulo' (14,26). O Evangelho de Mateus coloca da seguinte maneira a mesma
afirmação: 'Quem ama o pai ou a mãe mais que a mim, não é digno de
mim. Quem ama o filho ou a filha mais que a mim, não é digno de mim' (10,37). Em Mateus a exigência de Jesus está colocada de maneira mais
razoável e menos chocante. Isto acontece também em relação ao
divórcio: Mateus atenua o radicalismo de Jesus e torna mais razoável a
sua exigencia (Cf. nota 'Matrimônio e divórcio na Igreja de
Mateus' : in G. Barbaglio: Os Evangelhos, 1990, 295-298).
O NT é inspirado pelo Espírito Santo, portanto Mateus
tem autoridade para isso. E em tudo isso, é possível ver a gênese da
Igreja primitiva, que vai se apropriando do ensinamento de Jesus de modo
criativo, adaptando-o às circunstâncias, re-interpretando a mensagem diante de
uma nova situação, mantendo a fidelidade ao Espírito de Cristo e ao núcleo de
sua mensagem. Cristo e o cristianismo não são fundamentalistas. A
fidelidade a Deus não é seguir um código de leis imutáveis ao pé da letra, mas
amar e seguir uma pessoa que nos mostra que a lei é feita para o homem, e que a
misericórdia tem prioridade na conduta humana e na relação com Deus. A
re-interpretação criativa da lei faz parte da mensagem de Cristo. A
fidelidade intransigente e opressora não são o Espírito do Evangelho.
A outra exceção é a de Paulo (1Cor 7,12-16). Trata-se
de casamentos mistos, em que um dos cônjuges é convertido, e o outro não; de
modo que um é cristão, e o outro não. Se o cônjuge não-cristão consente em
viver com o cônjuge cristão, este não deve repudiá-lo. Se o cônjuge não-cristão
quer se separar, o cônjuge cristão pode aceitar, pois neste caso "não
estão ligados". A razão é que 'foi para viver em paz que
Deus nos chamou'. Critério de Paulo: Deus nos chamou para
viver em
paz . Este é um critério inspirador para pastoral
matrimonial - possibilitar às pessoas viverem em paz. O NT foi
determinante na prática da Igreja ao longo de sua história.
A Igreja sempre afirmou a indissolubilidade do
matrimônio como mandamento do Senhor,
expresso na Sagrada Escritura. Entretanto há uma distinção entre doutrina
e aplicação prática, entre princípio e ação pastoral. A
ação pastoral deve levar em conta não somente a norma, mas também as
circunstâncias concretas de pessoas e comunidades.
As exceções à indissolubilidade também tiveram lugar
na história da Igreja. Elas se
encontram em alguns dos chamados Padres da Igreja (teólogos cristãos dos
primeiros séculos), como Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e São Gregório
Nazianzeno.
No Séc.VIII, S. Bonifácio, bispo na
Alemanha, consultou Roma sobre o caso de um homem casado que tinha uma mulher
doente mental e estava constrangido a viver em continência sexual. A consulta
foi se ele podia ter uma segunda mulher, se chegasse à conclusão de que era
impossível viver em
continência. A resposta de Roma, no pontificado de
Gregório II, foi que sim, lembrando porém o dever do casado de amparar a
mulher rejeitada.
No segundo milênio, a cristandade foi tomando caminhos
diferentes no Oriente e no Ocidente. O Ocidente, marcado pela mentalidade
latina, bastante jurídica, foi disciplinando o casamento no direito
eclesiástico. No século XII, surgiu o rito do matrimônio tal como nós
conhecemos. Anteriormente, as pessoas se casavam segundo o costume de suas
respectivas tradições.
Ainda hoje há uma exceção ao rito do matrimônio: nos
lugares onde não há sacerdote nem ministro do matrimônio, ou há pouca
assistência, onde ele vá menos de uma vez por mês, duas pessoas podem se unir
em matrimônio sem a sua presença, e esta união matrimônio é valida perante a
Igreja como sacramento (Código de Direito Canônico, 1116). É
uma mostra de que o sacramento do matrimônio não está no rito, mas na
vida. O rito é uma celebração daquilo que se vive, não uma necessidade
intrínseca do sacramento. O sacramento do matrimônio não é um fluído
invisível que emana das mãos do sacerdote no instante da celebração do
rito, mas é uma união de duas pessoas que se entregam uma a outra; e celebram
esta união na fé e na presença da comunidade cristã, pedindo a bênção de Deus.
A cristandade oriental, ao contrário da mentalidade
jurídica do ocidente, desenvolveu o princípio da economia. Consiste em
que Deus é um bom administrador (ecônomo) e a
Igreja deve exercer a misericórdia nos casos limites em que se esgotam
todos os outros recursos. A Igreja deve ter a atitude do bom pastor.
Aplicando-se este princípio à questão do divórcio, se aceitam exceções
à indissolubilidade e se celebra um segundo matrimônio.
Pertencem à cristandade oriental as Igrejas Ortodoxas
e a Igreja Católica de rito oriental. No século XVI, a Igreja Católica
realizou o concílio de Trento. O seu principal objetivo era reagir à Reforma
protestante, considerada heresia. Dentre as heresias da
Reforma estava a contestação dos sacramentos e da autoridade da Igreja. Os
protestantes aceitavam o divórcio em certas circunstâncias.
A reação católica foi de afirmar a autoridade da
Igreja, afirmar o valor dos sacramentos e condenar as posições dos protestantes. O
Concílio afirmou a indissolubilidade do matrimônio e quis condenar o divórcio. No
entanto, alguns de seus membros lembraram que esta condenação não podia ir de
encontro à pratica das Igrejas Orientais Católicas, que já tinham longa
tradição de tolerância e sempre foram ligadas a Roma. O texto foi modificado e
a sua forma final foi uma afirmação da doutrina da indissolubilidade, sem
condenar a prática das Igrejas Orientais, que mantiveram o seu costume. Isto
mostra que a doutrina da Igreja sempre foi de afirmação da
indissolubilidade, mas também que a sua ação pastoral sempre teve bolsões de
tolerância.
O magistério e o debate contemporâneo. O magistério é o ensinamento oficial da Igreja. O
magistério é exercido pelo Papa e pelos bispos católicos. O Papa João Paulo ll
escreveu uma carta pastoral sobre a família, em 1981, que se chama Familiaris
consortio (Comunidade ou associação familiar). Aí são tratados também
os problemas de separação e divórcio.
Há muitos pontos importantes que poucos católicos conhecem. Muitos
acham que a separação, por si só, é um pecado que impede a participação nos
sacramentos. Não é. O papa diz que 'motivos diversos, quais
incompreensões recíprocas, incapacidade de abertura a relações interpessoais,
etc..., podem conduzir dolorosamente o matrimônio válido a uma fratura muitas
vezes irreparável. Obviamente que a separação deve ser considerada remédio
extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas razoáveis'.
O papa reconhece portanto, que mesmo um matrimônio válido pode sofrer 'fraturas
irreparáveis' que justifiquem a separação. A separação não
é obstáculo a participação dos sacramentos (n.83). É
muito importante que os fiéis católicos saibam disto, pois muitos
casos de afastamento da Igreja se devem à pura ignorância. E há também
clérigos que não conhecem o ensinamento da Igreja e contribuem para o
afastamento dos fiéis.
Aos divorciados que contraem nova união, o papa dirige
uma palavra de acolhida e conforto: 'exorto vivamente os pastores e a
inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade
solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo, e melhor
devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a
Palavra de Deus, a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a
incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da
justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e a obras de
penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por
eles a Igreja, encoraje-os, mostre-se mãe misericordiosa e sustente-os na fé e
na esperança' (n.84). Trata-se de uma grande abertura, de uma
palavra bastante acolhedora que contrasta com o discurso moralista e
condenatório que muitas vezes já presenciamos em ambientes católicos e nos
púlpitos.
Quanto à participação nos sacramentos, ela não é
permitida aos divorciados que contraem nova união nem aos seus cônjuges. O
papa considera que este estado de vida contradiz a união de amor entre Cristo e
a Igreja, significada na Eucaristia. Considera também que se admitissem
estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca
da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio.
Este posicionamento do pontífice fez avançar bastante
a posição da Igreja e sua prática pastoral, no entanto ainda restam
problemas. Há muitas pessoas de fé profunda e de grande generosidade
que sofrem muito por não poderem participar da Eucaristia. Algumas
alternativas se apresentam.
O casamento na Igreja é regulado por uma legislação
eclesiástica chamada Direito Canônico. O Código de Direito Canônico prevê
casos em que um matrimônio pode ser declarado nulo. Tecnicamente não é
uma anulação do casamento, mas sim uma declaração
de nulidade, ou seja, juridicamente o matrimônio nunca existiu. Há uma
série de razões que tornam nulo o casamento religioso. Elas podem ser agrupadas
em três grupos: as falhas do consentimento, os impedimentos
dirimentes e a falta da forma canônica na sua
celebração. Muitas incompatibilidades radicais da vida em comum, que trazem
separação, podem ser enquadradas nas causas de nulidade. Muitas imaturidades
dos cônjuges também.
As causas de nulidade matrimonial são tantas que quase
todas as separações conjugais estão ligadas a elas. É possível ver em quase todas as separações
indícios de nulidade. Especialistas em direito canônico dizem que 80
a 95 por cento dos matrimônios são nulos. É um número impressionante,
mas real. Mesmo que posteriormente muitos dêem certo, a sua consumação não
se deu na época do casamento, mas muito depois.
Para iniciar o processo de nulidade matrimonial, um dos conjunges deve procurar o tribunal eclesiástico
da sua diocese. O processo dura em média um ano. Ao obterem a declaração
de nulidade, os ex-cônjuges podem se casar novamente na
Igreja. Juridicamente são solteiros. Maiores informações sobre este
assunto podem ser encontradas no livro de Jesus Hortal: Casamentos que
nunca deveriam ter existido (São Paulo, Loyola, 1987). É um livro
breve e elucidador. O título, entretanto, é questionável. Muitos problemas e
incompatibilidades da vida conjugal só podem ser avaliados com o passar do
tempo, e não a priori. Supor que tais casamentos ‘nunca
deveriam ter existido’, nós parece um certo exagero, além de sugerir que os
filhos (quando houver) ‘nunca deveriam ter nascido’.
A solução canônica não resolve todos os problemas no
campo das separações. Se todos
os casais separados procurassem o tribunal eclesiástico em busca da nulidade,
não haveria como atender a todos os casos. Além do mais, há muitas separações
dolorosas que já enfrentaram o processo civil. Submetê-las a um novo processo
judiciário, a mais depoimentos e interrogatórios, pode causar mais sofrimentos
a pessoas já bastante machucadas. Há feridas que ainda doem muito e não convém
mexer novamente. São situações em que as circunstâncias pastorais
desaconselham. Alguns processos podem demorar muitos anos e complicar a
vida dos separados. Há ainda casos em que é impossível se provar a nulidade
de um matrimônio. Diante disso, é necessário pensar em novas
alternativas.
O Pe. B. Häring, redentorista alemão e renomado
teólogo moral, abordou o problema. Ele foi um dos grandes renovadores da moral
católica. Nos anos 50 escreveu A Lei de Cristo, considerada
um divisor de águas. Anos depois, colaborou no concílio Vaticano II. No
final de sua vida, já enfermo, resolveu escrever um opúsculo sobre a questão
dos divorciados e os sacramentos, com a intenção de lhes dirigir uma palavra de
simpatia e de encorajamento. O livro se chama: Existe saída? Para
uma pastoral dos divorciados (São Paulo, Loyola, 1990). Ele escreve
como 'uma preparação imediata para a morte, com firme confiança na
promessa do senhor: 'Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão
misericórdia' (Mt 5,7)'.
Um dos pontos importantes é a indissolubilidade do
matrimônio entendida como ‘preceito’. Häring afirma que há dois tipos de
preceito: o preceito-meta e o preceito-limite. O preceito-meta é um
ideal, e o preceito-limite é a lei. O casamento indissolúvel é
Evangelho (Boa-Nova), está no nível da graça, é dom de Deus. É um
preceito-meta, um ideal que nem todos são capazes de alcançar; e não se
pode realizá-lo por força de lei, seja civil ou canônica.
Diante de separações em que é muito difícil e complexo
se obter a nulidade, Häring recomenda que, em caso de nova união, os
fiéis podem receber os sacramentos, desde que não haja escândalo na comunidade
eclesial. O novo casal deve expor a sua situação a um sacerdote
experimentado nestas questões, que possa recomendar a sua admissão aos
sacramentos.
O magistério da Igreja é também o ensinamento dos
bispos, que deve levar em conta as circunstâncias das Igrejas locais, como a
diversidade de mentalidades e de condicionamentos culturais. Recentemente os
bispos alemães do Reno Superior publicaram uma carta pastoral sobre os
divorciados recasados (julho de 1993. Tradução: Sedoc 242
(1994), 423-438). Afirmam que se pode conceder a eles a comunhão, desde
que observadas certas condições, como a boa consciência da pessoa e a certeza
de que não se causará escândalo na comunidade eclesial. Basicamente
assumem a mesma posição de Häring. Um dos signatários da carta é dom Karl
Lehmann, presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha.
Há um número significativo de bispos, párocos e
comunidades eclesiais em todo o mundo que adotam esta mesma posição. Ao que tudo indica, em muitas comunidades e
ambientes eclesiais, a comunhão de divorciados recasados não causa escândalo;
pelo contrário, é vista até com simpatia por muitos fiéis.
É tarefa da Igreja local buscar a inculturação da fé,
isto é, expressá-la numa cultura diferente. Isto exige um trabalho de
re-interpretação do conteúdo da fé e suas incidências morais, levando em conta
um novo ambiente cultural. Esta inculturação conduz a novas formas de
expressão, que fazem sentido para aqueles que participam do contexto cultural.
Este é um dos grandes temas da pregação do Papa João Paulo II - a necessidade
de inculturação. Não é abandono da fé, mas uma adaptação que é fiel ao
essencial no Evangelho.
Nós vivemos numa nova cultura, que muitos chamam ‘pós-moderna’. Ela
se diferencia bastante do passado recente, de duas gerações anteriores. Tais
mudanças culturais também exigem o trabalho de inculturação da fé, que passa
pela moral sexual e matrimonial. Este trabalho implica reconstrução e a
preservação da família num mundo que mudou, que não volta mais a ser o que
era. Os cristãos podem desempenhar aí um papel fundamental, com
discernimento e sensibilidade para os sinais dos tempos.
K. Rahner, um dos grandes teólogos do século XX, nos
dá uma importante contribuição neste debate, trabalhando o conceito
de cristão adulto. O que significa ser cristão adulto? A
maioridade é a auto-determinação da pessoa. Existe uma maioridade civil,
profissional, afetiva, familiar, política, etc... A pessoa adulta
muitas vezes deve tomar decisões em situações complexas, onde as normas gerais
da sociedade e das instituições não decidem por ela e nem prevêem de maneira
adequada todas as circunstância. As normas podem servir como referência,
mas não substituem o juízo e a decisão pessoal. Na vida cristã, o fiel
também encontra situações em que deve tomar decisões sérias, em que outros não
podem decidir por ele, nem mesmo a Igreja. Aí o fiel deve ser adulto
também como cristão, colocando-se diante de Deus e de sua consciência,
escolhendo o que for melhor e assumindo as consequências.
Para Rahner, se alguém sabe, diante de Deus e de sua
própria consciência examinada com honradez, que seu matrimônio é inválido
também segundo a doutrina geral da Igreja, mas não pode demostrá-lo diante do
foro eclesiástico e não obtem a autorização para contrair um novo
matrimônio, então deve casar-se somente no civil e está justificado também
diante de Deus (K. Rahner: El cristiano mayor de edad, in: Razón
y Fe/1982). Ser adulto às vezes é se encontrar só, sem
o respaldo dos outros. Ser cristão adulto é se expor à essa solidão,
sem o respaldo eclesial desejado, mas é olhar para Deus e para o mundo com
responsabilidade.
Nesta comunicação, não pretendemos resolver o problema
dos divorciados na Igreja, nem tomar partido nas diversas posições e nem dizer
a última palavra sobre a questão. O que desejamos é ajudar a esclarecer
a consciência dos fiéis e mostrar como o problema se coloca na Igreja.
Dando elementos para a reflexão dos fiéis, podemos favorecer a ação do Espírito
de Deus, que sopra onde quer, conduzindo o povo santo e pecador dos caminhos
tortuosos da história rumo à casa do Pai.
Uma pergunta: O que você achou deste
artigo?
Excelente!Humano! Gostaria de tê-lo lido há quarenta anos atrás....
ResponderExcluirO TEXTO expressa uma vez mais a sensibilidade, responsabilidade e amorosidade do Pastor. Um texto lúcido, corajoso e belo.
ResponderExcluirParabéns, Padre Ramon! Que Deus continue abençoando e iluminando suas palavras e ações para que venha outros textos para orientar as nossas reflexões.
Grande Abraço.
Joana Eleutério
Excelente, Pe. Ramón. Muito esclarecedor, com certeza iluminado pelo Espírito Santo.
ResponderExcluirMuito obrigada.
Lylia
Texto esclarecedor do Pe. Luis Correa.
ResponderExcluirObrigado por compartilhar, amigo.
Abraço,
Francis
Texto esclarecedor do Pe. Luis Correa.
ResponderExcluirObrigado por compartilhar, amigo.
Abraço,
Francis
Como católica, que lê e acredita no Santo Evangelho, traída pelo marido que após 37 anos de casamento me empurrou goela abaixo um filho bastardo e não somente uma, mas duas amantes, me roubou na empresa, me deixou cheia de dívidas, com oficiais de justiça à porta, então, vejo com pesar essa posição da igreja, a quem aparentemente só interessa "não diminuir o nº de fiéis" em suas paróquias. Na maioria dos casos desses "recasados" se enquadram pessoas que estão juntas por egoismo, por destruírem seus lares em busca de satisfação pessoal que já não encontravam em seus matrimônios, pessoas sem ética, sem lealdade, sem amor pelo próximo, pela sua família e por todas as pessoas envolvidas no relacionamento de um casal que se veem perdidas quando ocorre uma separação, uma quebra de confiança, que passam a não mais acreditar na instituição familiar, dita projeto de Deus - então, a igreja vai dar aval a esse tipo de procedimento, sob os pretextos enumerados nesse texto? "Uma adaptação que é fiel ao essencial no Evangelho?" A comunhão de divorciados recasados não causa escândalo; pelo contrário, é vista até com simpatia por muitos fiéis?" "Se pode conceder a eles a comunhão, desde que observadas certas condições, como a boa consciência da pessoa e a certeza de que não se causará escândalo na comunidade eclesial?"
ResponderExcluir"Há muitas pessoas de fé profunda e de grande generosidade que sofrem muito por não poderem participar da Eucaristia." OK então, se isso for verdade, é justamente esse um dos motivo que faz a pessoa cristã reavaliar a sua decisão, por temor à lei divina muitos matrimônios são preservados e muitas famílias são preservadas. Então, vamos simplesmente esquecer o que que está escrito nas sagradas escrituras? Então, tudo é uma questão de interpretação? "Isto revela a interpretação de Mateus e sua comunidade sobre o ensinamento de Jesus"
"A Igreja sempre afirmou a indissolubilidade do matrimônio como mandamento do Senhor, expresso na Sagrada Escritura. ENTRETANTO HÁ UMA DISTINÇÃO ENTRE DOUTRINA E APLICAÇÃO PRÁTICA, ENTRE PRINCÍPIO E AÇÃO PASTORAL. A ação pastoral deve levar em conta não somente a norma, mas também as circunstâncias concretas de pessoas e comunidades?" VAMOS REINTERPRETAR A BÍBLIA À LUZ DAS BARBARIDADES QUE ESTÃO OCORRENDO NO MUNDO? Mas não são esses acontecimentos, justamente, os sinais de que o fim do mundo terreno, do jeito que o conhecemos, está próximo? vamos re-significá-lo? Sinceramente? I give up.... Essa não é a Igreja Católica que conheci, que luta pela instituição do casamento, contra o aborto, contra a eutanásia, que se declarava a Igreja de Cristo. Ah! mas de repente não é mais... Não foi o que o Papa Francisco declarou recentemente?
É...diante da sua história de vida, não há nada o que declarar...
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