No dia 31
de outubro, católicos e luteranos de todo o mundo se reunirão em Lund para
comemorar o quinto centenário da Reforma. Naquele
dia, vão se completar os 499 anos da afixação, por parte de Lutero, das 95 teses que contestavam a Igreja e
a teologia do seu tempo.
O Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Federação Luterana
Mundial colaboraram na organização desse
evento ecumênico especial em Lund. Para
mim, como arcebispa da Igreja da Suécia, é um
prazer que a responsabilidade de hospedá-lo tenha sido confiada a nós, em
cooperação com a Igreja Católica na Suécia.
Martinho Lutero queria
renovar a Igreja a partir de dentro, não fragmentá-la. A história seguiu um
caminho diferente. A Reforma teve uma grande importância para os
desenvolvimentos em muitos âmbitos, da Igreja e do Estado à educação, à
economia e à cultura. Aquilo que desejamos, porém, não é uma celebração
triunfal da Reforma. Ao contrário, luteranos e católicos expressarão juntos, na
oração partilhada, a alegria por aquilo que têm em comum, o arrependimento pelo
dano criado pela discórdia e o firme propósito de testemunhar juntos ao mundo a
misericórdia de Deus, trabalhando pela reconciliação, pela paz e pela justiça
para toda a criação.
Provavelmente,
o encontro em Lund assumirá uma importância histórica.
Ele foi precedido por 50 anos de diálogo entre o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Federação Luterana
Mundial. Esse diálogo levou à revolucionária publicação "Do conflito à comunhão" (2013), agora disponível em 12
línguas [aqui, em
português]. O texto se baseia naquilo que nos une, sem ignorar o que ainda nos
divide. Pela primeira vez, depois de 500 anos, luteranos e católicos chegaram a
um acordo sobre uma descrição conjunta da história, assim como sobre
imperativos comuns para o futuro. É um novo e importante para o nosso caminho
rumo a uma maior unidade visível da Igreja.
É justo
reconhecer as consequências contrastantes da Reforma. Ele
trouxe benefícios em nível literário em termos de capacidades tanto de leitura
quanto de escrita e, por extensão, contribuiu para o desenvolvimento da
democracia. A família do pastor protestante se tornou um fator cultural. À
Reforma, seguiu-se um longo período de conflitos políticos, tanto dentro dos
países europeus, quanto entre eles. A Guerra dos Trinta
Anos (1618-1648) dilacerou comunidades e
causou tragédia para milhares de famílias. As pessoas foram perseguidas por
causa da sua fé. O monaquismo foi prejudicado. A única verdadeira doutrina estabelecida pelo poder secular criou, por
muitos séculos, limites à fé e aos costumes religiosos. Essa ordem afetou tanto
os fiéis cristãos das diversas confissões, quanto os judeus e muçulmanos
Ao mesmo
tempo, a literatura espiritual na Suécia, contudo, foi muito aberta às
influências ecumênicas, incluindo os escritos da tradição inaciana. O teólogo
luterano Johann Arndt, que foi
uma espécie de autor de best-seller do seu tempo, baseou em parte o seu próprio
trabalho em textos do terciária franciscana Angela de Foligno. A herança ecumênica e as tradições espirituais medievais permaneceram
vivas em todos esses séculos nas diversas partes da Igreja.
Depois de 500 anos, talvez foi mais fácil do que nunca chegar a uma visão equilibrada da Reforma, capaz de comemorar continuidade e desacordo, benefícios e opressões. As desconcertantes palavras de Lutero sobre os judeus contribuíram com um ódio devastador contra eles. É doloroso ler sobre a vigorosa máquina de propaganda contra aquele que era definido como papismo, sobre o sentimento anticatólico e sobre a caça às bruxas da ortodoxia extrema contra a religião popular.
Depois de 500 anos, talvez foi mais fácil do que nunca chegar a uma visão equilibrada da Reforma, capaz de comemorar continuidade e desacordo, benefícios e opressões. As desconcertantes palavras de Lutero sobre os judeus contribuíram com um ódio devastador contra eles. É doloroso ler sobre a vigorosa máquina de propaganda contra aquele que era definido como papismo, sobre o sentimento anticatólico e sobre a caça às bruxas da ortodoxia extrema contra a religião popular.
No
entanto, a alegria e a liberdade que decorrem da justificação por meio da graça
através da fé se destacam como um dom perene. Libertados por graça de Deus, os
cristãos podem viver e trabalhar juntos por um mundo justo, pacífico e
reconciliado.
O aniversário da Reforma coincide com uma fase de crescimento no cristianismo. A Europa não domina mais a comunidade mundial das Igrejas. Nas últimas décadas, no hemisfério Norte, houve uma secularização relativamente rápida, enquanto o número dos cristãos está crescendo de modo consistente no hemisfério Sul. Não é por acaso que o papa é argentino e que o secretário-geral da Federação Luterana Mundial vem do Chile.
O aniversário da Reforma coincide com uma fase de crescimento no cristianismo. A Europa não domina mais a comunidade mundial das Igrejas. Nas últimas décadas, no hemisfério Norte, houve uma secularização relativamente rápida, enquanto o número dos cristãos está crescendo de modo consistente no hemisfério Sul. Não é por acaso que o papa é argentino e que o secretário-geral da Federação Luterana Mundial vem do Chile.
A
discórdia entre católicos e luteranos não pertence, de modo idêntico, à herança
histórica dos cristãos em outras partes do mundo. O desafio para a comunidade
das Igrejas não diz respeito em primeiro lugar às diferenças confessionais, mas
sim às questões relacionadas com a injustiça social, os conflitos armados e a
pobreza. As mudanças no panorama religioso e político levaram a uma maior
abertura ecumênica em relação ao passado.
O
encontro de Lund será um encontro global entre
católicos e luteranos. Como luteranos, temos motivo para refletir de maneira
autocrítica sobre como podemos contar a história da Reforma, com respeito recíproco, espírito de
responsabilidade ecumênica, consciência global e vontade constante de fazer com
que a reforma ocorra. Também temos razão para comemorar a continuidade desde
que esta nossa parte do mundo, pela primeira vez, se tornou cristã. Essa
continuidade contribuiu para a escolha do Vaticanoe da Federação Luterana Mundial de realizar o seu encontro conjunto
em Lund, onde há uma catedral que, sozinha, testemunha muitas centenas de anos
de presença cristã.
Em um recente artigo, o
cardeal Kurt Koch, presidente
do Pontifício Conselho
para a Promoção da Unidade dos Cristãos, e Martin Junge,
secretário-geral da Federação Luterana
Mundial, afirmaram: "Em um mundo que lida com falhas na comunicação, com a
crescente recorrência de discursos inflamados e divisivos e com o aumento da
violência e dos conflitos, luteranos e católicos irão partir do profundo da sua
fé compartilhada no Deus Uno e Trino para declarar publicamente: juntos,
católicos e luteranos vão se aproximar cada vez mais do seu Senhor e Salvador
comum Jesus Cristo".
Ou, como
disse o cardeal Walter Kasper,
presidente emérito do Pontifício Conselho
para a Promoção da Unidade dos Cristãos: "O ecumenismo não significa conversão de
uma Igreja a outra; significa conversão de todos a Jesus Cristo", o que reflete o modelo proposto pelo papa,
ou seja, o de um poliedro, de um corpo de muitas facetas, em que todas as
partes formam um conjunto; mas participam desse conjunto de modos diferentes, e
é precisamente porque mantêm a sua unicidade que contribuem para a beleza e a
atratividade do conjunto.
Uma
mulher luterana, casada com um católico, perguntado ao papa quais eram as
possibilidades de receber juntos a Santa Comunhão, obteve a seguinte resposta:
"Façam sempre referência ao batismo... Um só batismo, um só Senhor, uma só
fé. Falem com o Senhor e sigam em frente".
Atitudes
passadas de antiecumenismo e de autocomplacência surgem novamente em todas as
comunidades de fé. A comemoração comum do dia 31 de outubro, porém, recordará
fortemente que não há melhor caminho para seguir em frente do que o da cura das
memórias, de um ecumenismo da amizade e de um serviço comum a um mundo que pede
em alta voz esperança, paz justa e reconciliação.
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