Na sexta-feira, 20/JAN, e durante uma hora e 15minutos, num aposento simples da Casa de Santa Marta, onde mora, Jorge Mario Bergoglio, que nasceu em Buenos Aires há oito décadas e caminha rumo ao quarto ano de pontificado, afirmou que “na Igreja há santos e pecadores, decentes e corruptos”, mas que se preocupa sobre tudo com “uma Igreja anestesiada” pelo mundanismo, distante dos problemas das pessoas.
Com um típico humor portenho, Francisco demonstra
estar ciente não só do que ocorre dentro do Vaticano, mas na fronteira sul da
Espanha e nos bairros carentes de Roma. Diz que adoraria ir à China (“quando me convidarem”) e que, embora de
vez em quando também dê seus “tropeços”, sua única revolução é a do Evangelho.
Pergunta. Santidade, o que resta, depois de quase quatro
anos no Vaticano, daquele padre das ruas, que chegou de Buenos Aires a Roma com
a passagem de volta no bolso?
Resposta. Que continua
sendo das ruas. Porque assim posso sair na rua para cumprimentar as pessoas nas
audiências, ou quando viajo... Minha
personalidade não mudou. Não estou dizendo que me propus a isso: foi
espontâneo. Não, aqui não é preciso mudar. Mudar é artificial. Mudar aos 76
anos é se maquiar. Não posso fazer tudo o que quero lá fora, mas a alma das
ruas permanece, e vocês a veem.
P. Nos últimos dias de pontificado, Bento XVI
disse sobre seu último período à frente da Igreja: “As águas desciam agitadas,
e Deus parecia estar dormindo”. Também sentiu essa solidão? A cúpula da Igreja
estava dormindo em relação aos novos e antigos problemas das pessoas?
R. Eu, dentro da
hierarquia da Igreja, ou dos agentes pastorais da Igreja (bispos, padres,
freiras, leigos...), tenho mais medo dos
anestesiados do que dos que estão dormindo. Daqueles que se anestesiam com
o mundanismo. Então, negociam com o mundanismo. E isso me preocupa... Sim, tudo
está quieto, está tranquilo, se as coisas estão bem... ordem demais. Quando se
lê os Atos dos Apóstolos, as Epístolas de São Paulo, lá havia
confusão, havia problemas, as pessoas se movimentavam. Havia movimento e havia contato com as pessoas. O anestesiado não
tem contato com as pessoas. Defende-se da realidade. Está anestesiado. E hoje
em dia existem tantas maneiras para se anestesiar da vida cotidiana, não? E,
talvez, a doença mais perigosa que um pastor possa ter venha da anestesia, e é
o clericalismo. Eu aqui, e as pessoas lá. Você é o pastor dessas pessoas! Se
não cuidar dessas pessoas e deixar de cuidar dessas pessoas, feche a porta e se
aposente.
P. E há uma parte da Igreja anestesiada?
R. Todos temos
perigos. É um perigo, é uma tentação séria. É mais fácil estar anestesiado.
R. Por isso, mais do
que com os que estão dormindo, essa é a anestesia que o espírito de mundanismo
proporciona. Do mundanismo espiritual. Nesse sentido, chama minha atenção que
Jesus, na Última Ceia, quando faz essa longa oração ao Pai pelos discípulos, não
pede a eles “observem o quinto
mandamento, que não matem; o sétimo mandamento, que não roubem”. Não. Tomem cuidado com o mundanismo; tomem
cuidado contra o mundo. O que anestesia é o espírito do mundo. E, então, o
pastor se torna um funcionário público. E isso é o clericalismo, que, na minha
opinião, é o pior mal que a Igreja pode ter hoje.
P. Os problemas enfrentados por Bento XVI no
final de seu pontificado e que estavam naquela caixa branca que ele lhe
entregou em Castel Gandolfo. O que havia lá dentro?
R. A normalidade
da vida da Igreja: santos e pecadores, decentes e corruptos. Estava tudo ali!
Havia gente que tinha sido interrogada e está limpa, trabalhadores... Porque
aqui na Cúria há santos, viu? Há santos. Gosto de dizer isso. Porque fala-se
com facilidade da corrupção da Cúria. Há
pessoas corruptas na Cúria. Mas também muitos santos. Homens que passaram a
vida inteira servindo às pessoas de maneira anônima, atrás de uma mesa, em um
diálogo ou em um escritório para conseguir... Ou seja, dentro dela existem
santos e pecadores. Naquele dia, o que mais me impressionou foi a memória do
santo Bento. Que me disse: “Olha, aqui
estão as atas, na caixa”. Um envelope com o dobro deste tamanho: “Aqui está a sentença, de todos os
personagens.” E aqui, “fulano, tanto”. Tudo de cor! Uma memória
extraordinária. E a conserva, a conserva.
P. Ele se encontra bem de saúde?
R. Daqui para
cima, perfeito. O problema são as pernas.
Caminha com ajuda. Tem uma memória de elefante, até as nuances. Então digo uma
coisa, e me responde: “Não foi naquele
ano, foi no ano tal.”
R. Com relação à
Igreja, eu diria que a Igreja não deixe
de estar próxima das pessoas. Que procure sempre estar perto. Uma Igreja
que não é próxima não é Igreja. É uma boa ONG. Ou uma boa organização piedosa
de pessoas boas que fazem beneficência, se reúnem para tomar chá e fazer
caridade. Mas o que identifica a Igreja é a proximidade: sermos irmãos
próximos. Porque a Igreja somos todos. Então, o problema que sempre existe na
Igreja é que não haja proximidade. E
proximidade significa tocar, tocar no próximo a carne de Cristo. É curioso:
quando Cristo nos diz o protocolo com o qual seremos julgados, que é o capítulo
25 de Mateus, é sempre tocar o próximo. “Tive
fome, estive preso, estive doente...”. Sempre a proximidade para ver a
necessidade do próximo. Que não é só a beneficência. É muito mais do que isso.
Depois, com relação ao mundo, minha
preocupação é a guerra. Estamos na
Terceira Guerra Mundial em pedacinhos. E, ultimamente, já se fala de uma
possível guerra nuclear como se fosse um jogo de cartas. E isso é o que mais me
preocupa. Do mundo, preocupa-me a desproporção econômica: que um pequeno grupo
da humanidade tenha mais de 80% da riqueza, com o que isso significa na
economia líquida, onde no centro do sistema econômico está o deus dinheiro e
não o homem e a mulher, o humano! Assim, cria-se
essa cultura de que tudo é descartável.
P. Santidade, com relação aos problemas do mundo
que o senhor mencionava, exatamente neste momento Donald Trump está tomando
posse como presidente dos EUA. E o mundo vive uma tensão por esse fato. Qual a
sua consideração sobre isso?
R. Veremos o que acontece. Mas me assustar
ou me alegrar com o que possa acontecer, nisso acho que podemos cair numa
grande imprudência – sermos profetas ou de calamidades ou de bem-estares que
não vão acontecer, nem uma coisa nem outra. Veremos o que ele faz e, a partir daí, avaliaremos. Sempre o
concreto. O cristianismo, ou é concreto
ou não é cristianismo. É curioso: a primeira heresia da Igreja foi logo
depois da morte de Cristo. A heresia dos
gnósticos, que o apóstolo João condena. E era a religiosidade spray, como a chamo, do não concreto. Sim, eu,
sim, a espiritualidade, a lei... mas tudo spray. Não, não.
Coisas concretas. E do que é concreto tiramos as consequências. Nós perdemos
muito o senso do concreto. Outro dia, um pensador me dizia que este mundo está
tão desorganizado que falta um ponto fixo. E é justamente o concreto que nos dá
pontos fixos. O que você fez, o que disse, como age. Por isso eu, diante disso,
espero e vejo.
P. Não se preocupa com o que escutou até
agora?
P. Para os setores mais tradicionais, qualquer
mudança, mesmo que seja apenas na linguagem, é uma traição. Para o outro
extremo, nada será suficiente. Como o senhor disse, tudo já estava escrito na
essência do Evangelho. Trata-se, então, de uma revolução da normalidade?
R. Eu procuro, não sei se consigo, fazer o que
manda o Evangelho. Isso é o que busco. Sou pecador e nem sempre consigo
isso, mas é o que procuro. É curioso: a história da Igreja não foi levada
adiante por teólogos, padres, freiras nem bispos... sim, em parte sim, mas os verdadeiros protagonistas da história da
Igreja são os santos. Ou seja, aqueles homens e mulheres que deram a vida
para que o Evangelho fosse concreto. São eles que nos salvaram: os santos. Às
vezes, pensamos nos santos como uma freirinha que fica olhando para cima com os
olhos revirados. Os santos são os
concretos do Evangelho na vida diária! E a teologia que podemos obter a
partir da vida de um santo é muito grande. Evidentemente, os teólogos, os
pastores, todos são necessários. E isso é parte da Igreja. Mas é preciso buscar
o Evangelho. E quem são os melhores portadores do Evangelho? Os santos. Você
utilizou a palavra “revolução”. Isso é revolução! Eu não sou santo. Não estou
fazendo nenhuma revolução. Estou tentando que o Evangelho siga adiante. Mas de
maneira imperfeita, porque também tenho meus tropeços às vezes.
P. Não acha que, entre muitos católicos, possa
existir algo como a síndrome do irmão do filho pródigo, que consideram que se
presta mais atenção aos que se foram do que aos que permaneceram dentro,
observando os mandamentos da Igreja? Lembro-me de que, numa das suas viagens,
um jornalista alemão lhe perguntou por que não falava nunca da classe média, daqueles
que pagam impostos...
R. Aqui há duas
perguntas. A síndrome do filho mais velho: é verdade que os que estão cômodos
numa estrutura eclesiástica que não os compromete muito ou que têm posturas que
os protegem do contato se sentirão incômodos com qualquer mudança, com qualquer
proposta do Evangelho. Gosto de pensar muito no dono do hotel aonde o
samaritano levou aquele homem que havia sido surrado pelos ladrões, roubado
pelo caminho. O dono do hotel sabia da
história, que foi contada pelo samaritano: havia passado um padre, olhou, estava
atrasado para a missa e o deixou jogado no caminho, não queria se manchar com o
sangue, porque isso o impedia de celebrar segundo a lei. Passou o advogado, o
levita, e viu e disse: “Ai, não vou me
meter aqui, perderei muito tempo, amanhã no tribunal serei testemunha e... não,
não, melhor não me meter.” Parecia nascido em Buenos Aires, e se desviou
assim, que é o lema dos portenhos: “Não
se meta”. E passa outro, que não é judeu, que é um pagão, que é um pecador,
considerado o pior de todos: se comove e levanta o homem. O estupor que o dono
do hotel teve é enorme, porque viu algo incomum. Mas a novidade do Evangelho cria estupor porque é essencialmente
escandalosa. São Paulo nos fala do escândalo da cruz, do escândalo do Filho
de Deus feito homem. O escândalo bom, porque também Jesus condena o escândalo
contra as crianças. Mas a essência evangélica é escandalosa para os parâmetros
da época. Para qualquer parâmetro mundano, a essência é escandalosa. Portanto,
a síndrome do filho mais velho é, em certa medida, a síndrome daquele que já
está acomodado na Igreja, do que de alguma maneira tem tudo claro, tudo fixo
sobre o que é preciso fazer, e que não me venham predicar coisas estranhas.
Assim se explicam nossos mártires, que deram sua vida por predicar algo que
incomodava. Essa é a primeira pergunta. A
segunda: eu não quis responder ao jornalista alemão, mas em vez disso lhe
disse: “Vou pensar, você tem um pouco de
razão”. Falo continuamente da classe média sem mencioná-la. Uso uma palavra
de Malègue, um romancista francês: ele fala da “classe média da santidade”. [Joseph Malègue foi o autor de Pedras Negras: As Classes Médias da Salvação e de Augustine.] Estou falando continuamente dos pais de
família, dos avós, dos enfermeiros, das enfermeiras, das pessoas que vivem para
os demais, que criam os filhos, que trabalham... A santidade dessas pessoas é
enorme! São elas também que levam a Igreja adiante: as pessoas que vivem de seu trabalho com dignidade, que criam seus filhos,
que enterram seus mortos, que cuidam dos avós, que não os trancam em lares de
idosos, essa é nossa santa classe média. Do ponto de vista econômico, hoje
a classe média tende a desaparecer, obviamente, cada vez mais, e pode correr o
risco de se refugiar nas cavernas ideológicas. Mas essa “classe média da
santidade”: o pai, a mãe de família, que celebram sua família, com seus pecados
e suas virtudes, o avô e a avó. A família. No centro. Essa é a “classe média da
santidade”. Malègue teve uma grande intuição nesse ponto, chegando a dizer uma
frase que pode impressionar. Num de seus romances, Augustine, quando num diálogo um ateu lhe diz: “Mas o senhor acredita que Cristo é Deus?”,
e lhe apresenta o problema: acha que o
Nazareno é Deus? “Para mim, não é um
problema”, responde o protagonista do romance. “O problema para mim seria se Deus não se fizesse Cristo”. Essa é a
“classe média da santidade”.
P. Santidade, o senhor falava de cavernas
ideológicas. A que se refere? O que lhe preocupa sobre esse aspecto?
R. Não é que me
preocupe. Eu aponto a realidade.
Estamos sempre mais cômodos no sistema ideológico que foi elaborado, porque é
abstrato.
P. Isso se exacerbou, se potencializou nos
últimos anos?
R. Sempre houve,
sempre. Não diria que se exacerbou porque há muita desilusão com isso também.
Creio que havia mais no tempo anterior à Segunda Guerra Mundial. Digo. Não
pensei muito. Estou repassando um pouco... Sempre, no restaurante da vida, nos
oferecem pratos de ideologia. Sempre. Você pode se refugiar nisso. São refúgios, que o impedem de tocar a
realidade.
P. Santo Padre, durante estes anos, nas
viagens, vi o senhor se emocionar e emocionar muitos dos que escutavam suas
palavras... Por exemplo, em três ocasiões muito especiais: em Lampedusa,
quando se perguntou se havíamos chorado com as mulheres que perdem seus filhos
no mar; na Sardenha, quando falou sobre o desemprego e as vítimas do
sistema financeiro mundial; nas Filipinas, com o drama das crianças
exploradas. Duas perguntas: o que a Igreja pode fazer, o que está sendo
feito e como os governos estão agindo diante disso?
R. O símbolo que propus no novo órgão de
Migrações – no novo esquema, o Departamento de Migrações e Refugiados, que
preparei diretamente com dois secretários – é um salva-vidas laranja, como os que todos conhecemos. Numa
audiência geral, veio parte dos que trabalham no salvamento dos refugiados do
Mediterrâneo. Eu os cumprimentava, e este homem segurou esse objeto e começou a
chorar, apoiou-se no meu ombro e chorava, chorava: “Não consegui, não cheguei, não consegui.” E, quando se acalmou um
pouco, me disse: “A menina não tinha mais
de quatro anos. Entrego-lhe isto”. E
isso é um símbolo da tragédia que estamos vivendo. Sim.
P. Os governos estão respondendo à altura?
R. Cada um faz o que pode ou o que quer. É
um juízo difícil de fazer. Mas, obviamente, o fato de o Mediterrâneo ter se
transformado num cemitério deve nos fazer pensar.
P. Queria lhe perguntar se sente que sua
mensagem, sua viagem às periferias, aos que sofrem e estão perdidos, é
acolhida, acompanhada por uma estrutura talvez acostumada a caminhar em outro
ritmo. O senhor sente que avança num ritmo e a Igreja em outro? Sente-se
acompanhado?
R. Acho que não é
assim e, graças a Deus, a resposta em
geral é boa. É muito boa. Quando pedi às paróquias de Roma e aos colégios,
houve quem dissesse: “Isso foi um
fracasso”. Mentira! Não foi um fracasso! Uma alta porcentagem das paróquias de Roma, quando não tinham uma
casa grande à disposição ou quando a casa paroquial era pequena, sei lá, pois
os fiéis alugam um apartamento para uma
família imigrante... Nos colégios de freiras, às vezes sobrava lugar,
arrumaram um espaço para as famílias migrantes... A resposta é maior do que se acredita, não é divulgada. O Vaticano
tem duas paróquias, e cada paróquia tem uma família imigrante. Um apartamento
do Vaticano para uma família, outro para outra. A resposta é contínua. Não
100%. Qual porcentagem eu não sei. Mas
eu diria que 50% acho que sim. Depois, o problema da integração. Cada
imigrante é um problema muito sério. Eles fogem de seu país. Por fome ou
guerra. Então, a solução deve ser buscada ali. Por fome ou por guerra, são
explorados. Penso na África: o símbolo da exploração. Inclusive, ao dar
independência, algum país lhes deu independência do solo para cima,
reservando-se o subsolo. Ou seja: são sempre usados e escravizados... Então, a
política de acolhida tem várias etapas. Há uma acolhida de emergência: você tem
que receber [o migrante] e tem que recebê-lo porque, do contrário, ele se
afoga. Nisso a Itália e a Grécia estão
dando o exemplo, um exemplo muito grande. A Itália, inclusive agora, com os
problemas que tem com o terremoto e todas essas coisas, continua se preocupando
com eles. Recebendo-os. Claro: eles chegam à Itália porque é o país mais
próximo. Creio que na Espanha chegam de
Ceuta também. [Sim.] Mas, geralmente, a maioria não quer ficar na Espanha,
quer ir para o norte, porque buscam mais possibilidades.
P. Mas, na Espanha, há um muro que separa
Ceuta e Melilla de Marrocos. Não podem passar.
R. Sim, sim, eu sei.
E querem ir para o norte. Então, o problema é: recebê-los, sim, mais ou menos
por alguns meses, alojá-los. Mas é preciso começar um processo de integração. Acolher e integrar. E o modelo mundial
que está à frente é a Suécia. A Suécia
tem nove milhões de habitantes, dos quais 890.000 são “novos suecos”,
filhos de migrantes ou migrantes com cidadania sueca. A ministra de Relações
Exteriores – acho que era, a que foi se despedir de mim – uma moça jovem, era
filha de mãe sueca e pai do Gabão. Migrantes. Integrados. O problema é integrar. Por outro lado, quando não há integração, ficam em guetos, e não culpo ninguém, mas
de fato existem guetos. Que talvez naquele momento não perceberam que havia.
Mas os meninos que fizeram o desastre no aeroporto de Zaventem [em Bruxelas]
eram belgas, nascidos na Bélgica. Mas moravam num bairro fechado de imigrantes.
Ou seja, é fundamental o segundo passo: a integração. Qual é o grande problema
da Suécia agora? Não é que não venham imigrantes. Não estamos dando conta nos
programas de integração! Eles se perguntam o que mais podem fazer para que as
pessoas venham! É impressionante. Para mim, é um modelo mundial. E isso não é
novo. Eu disse logo de cara, depois de Lampedusa... Eu conhecia o caso da
Suécia pelos argentinos, uruguaios e chilenos que na época da ditadura militar
foram acolhidos ali, pois tenho amigos lá, e refugiados. Claro, depois que você chega à Suécia e lhe
oferecem organização médica, documentos, dão autorização para morar... E você
já tem uma casa, e na semana seguinte tem uma escola para aprender o idioma, um
pouquinho de trabalho... e vai para frente. Nisso San Egidio, aqui na
Itália, é um modelo. Os que vieram comigo no avião de Lesbos, e depois vieram
outros nove... O Vaticano se encarregou de 22, e estamos cuidando deles. E eles
lentamente vão se tornando independentes. No segundo dia, os meninos já iam ao
colégio. No segundo dia! E os pais lentamente encontram seu lugar, com um
apartamento, um trabalho aqui, meio trabalho ali, professores para o idioma...
San Egidio tem essa mesma postura. Ou seja, o problema então é: salvamento
urgente, sim, para todos. Segundo: receber, acolher da melhor forma possível. Depois integrar, integrar. Integrar.
P. Santidade, já faz 50 anos de quase tudo. Do
Concílio Vaticano II, da viagem de Paulo VI e do abraço com o patriarca
Atenágoras na Terra Santa. Há quem sustente que, para entendê-lo, convém
conhecer Paulo VI. Ele foi até certo ponto o papa incompreendido. O senhor
se sente também um pouco assim, um Papa incômodo?
R. Não. Não.
Acredito que, por meus pecados, deveria ser mais incompreendido. O mártir da incompreensão foi Paulo VI.
A Evangelii Gaudium, que é o marco da pastoralidade que
quero dar à Igreja agora, é uma atualização da Evangelii
Nuntiandi de Paulo VI. É um
homem que se antecipou à história. E sofreu, sofreu muito. Foi um mártir. E
muitas coisas ele não pôde fazer, porque, como era realista, sabia que não
podia e sofria, mas oferecia esse sofrimento. E o que pôde fazer ele fez. E é o
que Paulo VI fez de melhor: semear. Semeou coisas que depois a história foi
recolhendo. A Evangelii Gaudium é uma
mistura da Evangelii Nuntiandi e do
documento de Aparecida. Coisas que foram sendo trabalhadas de baixo para cima. A Evangelii Nuntiandi é
o melhor documento pastoral pós-conciliar e que não perdeu a atualidade.
Não me sinto incompreendido. Sinto-me
acompanhado, e acompanhado por todo tipo de gente, jovens, velhos… Sim, um
ou outro por aí não está de acordo, e tem o direito, porque se eu me sentisse
mal por alguém não estar de acordo haveria em minha atitude um germe de
ditador. Eles têm o direito de não estarem de acordo. Têm direito de pensarem
que o caminho é perigoso, que pode trazer maus resultados, que… eles têm o
direito. Mas desde que dialoguem, não que atirem a pedra e escondam a mão, isso
não. A isso nenhuma pessoa humana tem o direito. Atirar a pedra e esconder a mão não é humano, isso é delinquência.
Todos têm o direito de discutir, e quem dera discutíssemos mais, porque isso
nos burila, nos irmana. A discussão irmana muito. A discussão com bom sangue,
não com a calúnia e tudo isso…
P. Incômodo com o poder o senhor também não
sente?
R. É que o poder
não sou eu quem tenho. O poder é
compartilhado. O poder é quando se tomam as decisões pensadas, dialogadas,
rezadas; a oração me ajuda muito, e me sustenta muito. Não me incomoda o poder.
Incomodam-me certos protocolos, mas é porque eu sou assim, da rua.
P. O senhor está há 25 anos sem ver televisão
e, pelo que entendo, o senhor nunca foi muito fã de jornalistas, mas o
sistema de comunicação do Vaticano foi totalmente reinventado,
profissionalizado e elevado à categoria de dicastério. Os meios de comunicação
são tão importantes assim para o Papa? Existe uma ameaça à liberdade de
imprensa? E as redes sociais, podem causar um prejuízo à liberdade do
indivíduo?
R. Eu não
assisto televisão. Simplesmente senti que Deus me pediu isso, no dia 16 de julho
de 1990; fiz essa promessa e não sinto falta. Só fui ao centro de televisão que
ficava ao lado da arquidiocese para ver um ou dois filmes que me interessavam,
que poderiam servir para a mensagem. E veja que eu gostava muito de cinema e
tinha estudado bastante o cinema, especialmente o italiano do pós-guerra, e o
polonês Wajda, Kurosawa, e alguns franceses. Mas não ver televisão não me
impede de me comunicar. Não assistir
televisão foi uma escolha pessoal, nada mais. Mas a comunicação é divina.
Deus se comunica. Deus comunicou-se conosco por meio da história. Deus não
ficou isolado. É um Deus que se comunica, e falou conosco, nos acompanhou, nos
desafiou e nos fez mudar de rumo, e continua a nos acompanhar. Não se pode compreender a teologia católica
sem a comunicação de Deus. Deus não está estático lá e olha para ver como
os homens se divertem ou como se destroem. Deus se envolveu, e o fez
comunicando-se com a palavra e com sua carne. Ou seja, eu começo daí. Tenho um
pouco de medo quando os meios de comunicação não podem se expressar com a ética
que lhes é própria. Por exemplo, existem
maneiras de se comunicar que não ajudam, que atrapalham a unidade. Dou um
exemplo simples. Uma família que está jantando e as pessoas não se falam, ou
assistem televisão, ou as crianças estão com seus celulares enviando mensagens
a outras pessoas que estão fora. Quando
a comunicação perde o carnal, o humano, e se torna líquida, é perigosa. Que
se comunique em família e que as pessoas se comuniquem, e também da outra
maneira, é muito importante. O mundo virtual da comunicação é muito rico, mas
você corre o risco se não vive uma comunicação humana, normal, de tocar! O
concreto da comunicação é o que fará que o virtual da comunicação siga pelo bom
caminho. Ou seja, o concreto é inegociável
em tudo. Não somos anjos, somos pessoas concretas. A comunicação é
fundamental e deve seguir em frente. Há perigos como esse em todas as coisas. É
preciso ajustá-los, mas a comunicação é
divina. E há defeitos. Eu falei sobre os pecados da comunicação numa
conferência na ADEPA, em Buenos Aires, a associação que reúne os editores da
Argentina. E os presidentes me convidaram para um jantar em que tive de fazer
essa conferência. Lá eu apontei os pecados da comunicação e disse a eles: não
caiam nisso, porque o que os senhores têm em suas mãos é um grande tesouro.
Hoje em dia comunicar é divino, sempre foi divino porque Deus se comunica, e é humano porque Deus se comunicou humanamente.
Portanto, funcionalmente há um dicastério, obviamente, para dar um encaminhamento
a tudo isso. Mas o dicastério é uma coisa funcional. Não é porque hoje é
importante se comunicar, não. Porque a comunicação é essencial para a pessoa
humana, porque também é essencial a Deus!
P. O maquinário diplomático do Vaticano
funciona a todo vapor. Tanto Barack Obama quanto Raúl Castro agradeceram
publicamente o seu trabalho na aproximação. No entanto, existem outros casos,
como a Venezuela, Colômbia e o Oriente Médio, que ainda estão bloqueados. No
primeiro caso, inclusive, as partes criticam a mediação. O senhor teme que a
imagem do Vaticano sofra? Quais são suas instruções nesses casos?
R. Eu peço ao
Senhor a graça de não tomar nenhuma medida pela imagem. Mas pela honestidade,
pelo serviço, esses são os critérios. Não acredito que seja bom maquiar um
pouco. Às vezes podemos cometer erros,
a imagem se ressentirá, bom, isso é uma consequência, mas foi feito com boa
vontade. A história julgará as coisas. E depois há um princípio que é claro
para mim, que é o que tem de prevalecer
em toda a ação pastoral, mas também na diplomacia do Vaticano: mediadores, não
intermediários. Em outras palavras, fazer
pontes e não muros. Qual é a diferença entre o mediador e o intermediário?
O intermediário é aquele que tem, por exemplo, um escritório de compra e venda
de imóveis, procura quem quer vender uma casa e quem quer comprar uma casa,
eles se põem de acordo, ele cobra a comissão, presta um bom serviço, mas sempre
ganha algo, e tem direito porque é seu trabalho. O mediador é aquele que se
coloca a serviço das partes e faz com que as partes ganhem mesmo que ele perca.
A diplomacia do Vaticano tem de ser
mediadora, não intermediária. Se ao longo da história a diplomacia do
Vaticano fez uma manobra ou uma reunião e encheu o bolso, então ela cometeu um
pecado muito grave, gravíssimo. O mediador faz pontes, que não são para ele,
são para que os outros caminhem. E não cobra pedágio. Faz a ponte e se vai.
Para mim essa é a imagem da diplomacia vaticana. Mediadores e não
intermediários. Fazedores de pontes.
P. Essa diplomacia vaticana pode ser estendida
à China em breve?
R. De fato,
existe uma comissão que está trabalhando há anos com a China e que se reúne a
cada três meses, uma vez aqui e outra em Pequim. E há muito diálogo com a China. A China tem sempre aquela aura de
mistério que é fascinante. Há dois ou três meses, com a exposição do Museu do
Vaticano em Pequim, estavam felizes. E no próximo ano eles virão aqui no
Vaticano com suas coisas, seus museus.
P. E o Santo Padre, irá em breve à China?
R. Irei quando me convidarem. Eles sabem.
Além disso, na China as Igrejas estão cheias. Pode-se praticar a religião na
China.
P. Tanto na Europa quanto na América, as
consequências de uma crise que não acaba, o aumento da desigualdade e a
ausência de lideranças fortes estão dando lugar a formações políticas que
estão captando o mal-estar dos cidadãos. Algumas delas – que costumam ser
chamadas de antissistema ou populistas – aproveitam o medo das pessoas
de um futuro incerto para construírem uma mensagem de xenofobia, de ódio em
relação ao estrangeiro. O caso de Trump é o que mais chama a atenção,
mas também há os casos da Áustria e até da Suíça. O senhor está preocupado com
esse fenômeno?
R. É o que chamam de populismo. Essa é uma
palavra enganosa, porque na América Latina o populismo tem outro significado.
Lá significa o protagonismo dos povos, por exemplo, os movimentos populares.
Organizam-se entre eles... é outra coisa. Quando ouvia falar em populismo aqui
não entendia muito, ficava perdido, até que percebi que eram significados
diferentes dependendo dos lugares. Claro, as crises provocam medos, alertas.
Para mim, o mais típico exemplo dos populismos europeus é o 1933 alemão. Depois
de [Paul von] Hindenburg, a crise de 1930, a Alemanha estava destroçada,
tentava se levantar, buscava sua identidade, estava à procura de um líder, de
alguém que devolvesse sua identidade, e havia um rapazinho chamado Adolf Hitler
que disse “eu posso, eu posso”. E toda a
Alemanha votou em Hitler. Hitler não roubou o poder, foi eleito por seu povo,
e depois destruiu seu povo. Esse é o perigo. Em momentos de crise, o
discernimento não funciona, e para mim é uma referência contínua. Busquemos um salvador que nos devolva a
identidade e defendamo-nos com muros, com arames farpados, com qualquer
coisa, dos outros povos que podem nos tirar a identidade. E isso é muito grave. Por isso sempre
procuro dizer: dialoguem entre vocês, dialoguem entre vocês. Mas o caso da
Alemanha de 1933 é típico, um povo que estava naquela crise, que procurava sua
identidade, e então apareceu esse líder carismático que prometeu dar-lhes uma
identidade, e deu-lhes uma identidade distorcida e sabemos o que aconteceu.
Onde não há diálogo... As fronteiras podem ser controladas? Sim, cada país tem
o direito de controlar suas fronteiras, quem entra e quem sai, e os países que
estão em perigo – de terrorismo ou coisas desse tipo – têm mais direito de
controlar mais, mas nenhum país tem o direito de privar seus cidadãos do
diálogo com os vizinhos.
P. O senhor observa na Europa de hoje, Santo
Padre, sinais dessa Alemanha de 1933?
R. Não sou um
técnico nisso, mas sobre a Europa de hoje remeto-me aos três discursos que fiz.
Os de Estrasburgo e o terceiro quando do Prêmio Carlos Magno, que foi o único
prêmio que aceitei porque insistiram muito por causa do momento que a Europa
vivia, e aceitei como um serviço. Esses três discursos dizem o que penso sobre
a Europa.
P. A corrupção é o grande pecado do nosso
tempo?
R. É um grande pecado. Mas acredito que
não devemos atribuir-nos a exclusividade na história. Sempre houve corrupção.
Sempre. Aqui. Se alguém ler a história dos papas se depara com cada
escândalo... Para me referir à minha casa, sem me meter na do vizinho. Tenho
vários exemplos de países vizinhos onde houve corrupção na história, mas fico
com os meus. Aqui houve corrupção. E
pesada, hein. Basta pensar no papa Alexandre VI, nessa época, e em dona
Lucrécia com seus “chazinhos” [envenenados].
P. O que lhe chega da Espanha? O que lhe chega
sobre a recepção que há na Espanha da sua mensagem, sua missão, seu trabalho?...?
R. Hoje, da
Espanha, acabam de me chegar alguns polvorones e um turrón de Jijona (doces) que estão aí para
oferecer aos rapazes.
P. Hahaha. A Espanha é um país onde o debate
sobre o secularismo e a religiosidade está vivo, como o senhor sabe...
R. Está vivo,
muito vivo...
P. O que o senhor pensa disso? O processo de
secularismo pode acabar deixando a Igreja Católica numa situação marginal?
R. Diálogo. É o
conselho que dou a qualquer país. Por
favor, diálogo. Como irmãos, caso se animem, ou pelo menos como pessoas
civilizadas. Não se insultem. Não se condenem antes de dialogar. Se depois
do diálogo quiserem se insultar, bom, mas pelo menos dialogar. Se depois do
diálogo quiserem se condenar, bom..., mas primeiro o diálogo. Hoje, com o
desenvolvimento humano que existe, não se pode conceber uma política sem
diálogo. E isso vale para a Espanha e para todos. Então, se você me pedir um
conselho para os espanhóis, dialoguem. Se
há problemas, dialoguem primeiro.
P. Na América Latina, evidentemente, suas
palavras e decisões são acompanhadas com especial atenção. Como vê o
continente? Como vê sua terra?
R. O problema é
que a América Latina está sofrendo os efeitos – que ressaltei muito na Laudato Si – de um sistema econômico que tem no
seu centro o deus dinheiro, e então
[esses países] caem em políticas de fortíssima exclusão. E então se sofre
muito. E evidentemente hoje em dia a América Latina está sofrendo um forte
embate de liberalismo econômico forte, desse que eu condeno na Evangeli Gaudium quando digo que “esta economia
mata”. Mata de fome, mata de falta de cultura. A emigração não é só da África
para Lampedusa ou para Lesbos. A emigração é também do Panamá para a fronteira
do México com os Estados Unidos. As pessoas emigram procurando. Porque os
sistemas liberais não dão possibilidades de trabalho e favorecem delinquências.
Na América Latina há o problema dos
cartéis da droga, que existem, sim, e essa droga é consumida nos Estados
Unidos e na Europa. Fabricam-na para cá, para os ricos, e perdem a vida nisso.
E há os que se prestam a isso. Na nossa pátria temos uma palavra para
qualificá-los: os cipayos [mercenários]. É uma
palavra clássica, literária, que está em nosso poema nacional. O cipayo é aquele
que vende a pátria à potência estrangeira que possa lhe dar mais benefício.
E na nossa história argentina, por exemplo, sempre há algum político cipayo. Ou alguma postura política cipaya. Sempre houve na história. Então a América
Latina precisa se rearmar com formações de políticos que deem a força dos povos
à América Latina. Para mim, o exemplo maior é o do Paraguai do pós-guerra. Perde a guerra contra a Tríplice Aliança, e
o país fica praticamente nas mãos das
mulheres. E a mulher paraguaia sente que precisa erguer o país, defender a fé,
defender sua cultura e defender sua língua, e conseguiu. A mulher
paraguaia. A mulher paraguaia não é cipaya, defendeu o
seu, à custa do que fosse, mas defendeu, e repovoou o país. Para mim, é a mulher mais gloriosa da América. Aí
você tem um caso de uma atitude que não se entregou. Há heroísmo. Em Buenos
Aires há um bairro, à beira do rio da Prata, cujas ruas têm nomes de mulheres
patriotas, que lutaram pela independência, lutaram pela pátria. A mulher tem
mais senso... Talvez eu exagere. Bom, se exagero que me corrijam. Mas tem mais
senso de defender a pátria, porque é mãe. É menos cipaya. Tem
menos perigo de cair no cipayismo.
P. Por isso dói tanto a violência contra as
mulheres, que é uma mancha na América Latina e em tantos lugares…
R. Em todos os
lados. Na Europa… Na Itália, por exemplo, visitei organizações de resgate de
meninas prostitutas que são exploradas por europeus. Alguém me dizia que foi
trazida da Eslováquia no porta-malas de um automóvel para que pudessem passá-la
[pelas fronteiras e controles policiais]. E lhe dizem: você precisa trazer
tanto hoje, e se não trouxer isso, vai levar. Batem nelas… Em Roma? Em Roma. A
situação dessas mulheres aqui – em Roma! – é de terror. Nessa casa que visitei
havia uma a quem haviam cortado a orelha. Torturam-nas quando não reúnem
dinheiro suficiente. E as mantêm retidas porque as assustam, dizem que vão
matar os pais delas. Albanesas,
nigerianas, inclusive italianas. Uma coisa muito linda é que essa
associação se dedica a ir pelas ruas, as abordam e, em vez de lhes dizer
“Quanto você cobra?”, “Quando você custa?”, lhes perguntam: “Quando você sofre?”. E as levam para uma
colônia segura, a fim de que se recuperem. Visitei no ano passado uma dessas
colônias com meninas recuperadas e havia dois homens, eram voluntários. E uma
me disse: “Eu o encontrei”. Casou-se com o homem que a havia salvado e estavam
querendo ter um filho. O usufruto da mulher é das coisas mais desastrosas que
acontecem, também aqui, em Roma. A escravidão da mulher.
P. Não acha que, depois da tentativa
fracassada da Teologia da Libertação, a Igreja perdeu muitas posições para
outras confissões e inclusive seitas? A que se deve isso?
R. A teologia da liberação foi uma coisa
positiva na América Latina. Foi condenada pelo Vaticano a parte que optou
pela análise marxista da realidade. O cardeal Ratzinger fez duas instruções
quando era prefeito da Doutrina da Fé. Uma, muito clara, sobre a análise
marxista da realidade. E a segunda retomando aspectos positivos. A Teologia da
Libertação teve aspectos positivos e também teve desvios, sobretudo na parte da
análise marxista da realidade.
P. Suas relações com a Argentina. O Vaticano
se tornou, de três anos para cá, um lugar de peregrinação para políticos de
diversos partidos. O senhor se sente usado?
R. Ah, sim.
Alguns me dizem: Tiramos uma foto de lembrança, e lhe prometo que vai ser para
mim e que não vou publicá-la. E antes de sair pela porta já a publicaram
[sorri]. Bom, se fica feliz de usá-la, o problema é dele. Diminui a qualidade
dessa pessoa. Quem a usa tem pouca estatura. E o que vou fazer? O problema é
dele, não meu. Vêm muitos argentinos à audiência geral. Na Argentina sempre
houve muito turismo, mas agora passar por uma audiência geral do Papa é quase
obrigatório [risos]. Depois há os que vêm para cá e que são amigos – vivi 76
anos na Argentina –, às vezes minha família, alguns sobrinhos. Mas usado, sim,
tem gente que já me usou, usou fotos, como se eu tivesse dito coisas, e quando
me perguntam sempre respondo: não é problema meu, não fiz declarações, se ele
disse isso é problema dele. Mas não entro no jogo do uso. Ele lá com a sua consciência.
P. Um tema recorrente é o papel dos leigos e,
sobretudo, das mulheres na Igreja. Seu desejo é de que tenham maiores cotas
de influência e inclusive de decisão. Esses são seus desejos. Até onde
acredita que pode chegar?
R. O papel da
mulher não deve ser buscado tanto pela funcionalidade, porque assim vamos
acabar transformando a mulher, ou o movimento da mulher na Igreja, num machismo
de saia. Não. É muito mais importante que uma reivindicação funcional. O
caminho funcional é bom. A subdiretora da sala de imprensa do Vaticano é uma
mulher, a diretora dos museus vaticanos é uma mulher… Sim, o funcional está
bem. Mas a mim o que me interessa é que
a mulher nos dê seu pensamento, porque a Igreja é feminina, é “a” Igreja,
não é “o” Igreja, e é “a” esposa de Jesus Cristo, e esse é o fundamento
teologal da mulher. E quando me perguntam, sim, mas a mulher poderia ter mais…
Mas o que era mais importante: o dia de Pentecostes, a Virgem ou os apóstolos?
A Virgem. O funcional pode nos trair ao colocar a mulher no seu lugar – que é
preciso colocá-la, sim, porque ainda falta muito, e trabalhar para que possa
dar à Igreja a originalidade de seu ser e de seu pensamento.
P. Em algumas das suas viagens, escutei como
se dirigia aos religiosos, tanto da Cúria Romana quanto das hierarquias locais,
ou inclusive a padres e freiras, para lhes pedir mais compromisso, mais
proximidade, inclusive melhor humor. De que maneira acredita que recebem
esses conselhos, esses puxões de orelha?
R. No que mais insisto é na vizinhança, na proximidade.
E em geral é bem recebido. Sempre há
grupos um pouco mais fundamentalistas, em todos os países, na Argentina há.
São grupos pequenos, eu os respeito,
são gente boa, que prefere viver assim a sua religião. Eu prego o que sinto que
o Senhor me pede para pregar.
P. Na Europa, cada vez se veem mais padres e
freiras procedentes do chamado Terceiro Mundo. A que se deve este fenômeno?
R. Há 150 anos,
na América Latina, se viam cada vez mais padres e freiras europeus, e na África
o mesmo, e na Ásia o mesmo. As Igrejas
jovens foram crescendo. Na Europa o
que acontece é que não há natalidade. Na Itália está abaixo de zero. A
França é a que acredito estar mais à frente, por todas as leis de apoio à
natalidade. Mas não há natalidade. O
bem-estar italiano de alguns anos atrás cortou a natalidade por aqui.
Preferimos sair de férias, temos um cachorrinho, um gatinho, não há natalidade,
e se não houver natalidade não há
vocações.
P. Em seus consistórios, o senhor criou
cardeais dos cinco continentes. Como gostaria que fosse o conclave que
escolherá o seu sucessor? Santidade, o senhor acredita que verá o próximo
conclave?
R. Que seja
católico. Um conclave católico que escolha o meu sucessor.
P. E o verá?
R. Isso eu não
sei. Que Deus decida. Quando eu
sentir que não posso mais, meu grande mestre Bento já me ensinou como se deve
fazer. E se Deus me levar antes verei do outro lado. Espero que não do inferno…
Mas que seja um consistório católico.
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