A gente chega ao fim só quando o fim chega!... (M. de Barros)
Muito se tem falado e escrito sobre a crise experimentada por aqueles que se aproximam da metade da vida. A idade madura é caracterizada por determinantes específicos tais como força pessoal, eficiência no trabalho, responsabilidade, interioridade e nas mulheres, sobre tudo e também, por certas repercussões fisiológicas e psicológicas particulares. Os posicionamentos afetivos, vividos nas etapas precedentes, passam, agora, a serem percebidos de modo diferente, quando não se conta mais com a energia e a força da vontade, inerentes à juventude. Entre 40 e 50 anos, somos chamados a vivenciar novos relacionamentos, mais profundos e complexos que os anteriores, por ser maior o campo de visão. Quando diminuem as próprias forças, podemos confiar mais nos outros e também em Deus.
Na
primeira metade da vida a maioria das pessoas luta, teimosamente, por se abrir para
o mundo exterior, privilegiando as mediações do corpo e do ativismo. Desse modo, se pretende
encontrar o sentido da vida. Agitação, relacionamentos sociais intensos,
ativismo são alguns dos ingredientes usados para construir a própria identidade
e não sucumbir nessa travessia perigosa pelo mundo. Gastam-se energias
incríveis para tentar se adaptar a um estilo de vida externo, efêmero e
passageiro! Quantos sucumbem nesta adaptação ao meio circundante!
Com
o passar dos anos, o ‘eu’ é obrigado a olhar, não tanto para fora, mas para
essa outra realidade, imensa e profunda de sua vida interior. Não é fácil abrir os olhos
para esta nova realidade. Eis como uma religiosa define, perplexa, a descoberta
dessas profundezas do seu mundo interior, nessa fase do meio-dia da vida:
Tenho 44 anos
de idade. Neste período da minha vida, sem saber como e por que sinto-me sem
ânimo. Nunca pensei que poderia chegar à situação em que me encontro! Não tenho
forças para nada, falta-me coragem, ando cansada de tudo e de todos... Sinto
como se o mundo fosse outro e as coisas ao meu redor um obstáculo... Sinto-me
incapaz de assumir qualquer trabalho, mesmo aqueles que sempre fazia sem medir
esforços.
E viajar?
Parece brincadeira, mas aquelas viagens que para mim sempre foram tranquilas
ultimamente estou encontrando dificuldades incríveis. Os pensamentos que passam
pela minha cabeça são: onde está minha passagem?... Vou perder o ônibus!... Vai
ter um desastre e vou morrer!... Quantas perguntas tolas, sem fundamento; mas
elas entram na minha cabeça e me paralisam feito uma boba...
As perguntas não respondidas, os sentimentos de
insegurança e a confusão surgem com vigor, neste período da vida. Perde-se um
tempo precioso e um monte de energias para se situar, adequadamente e
acompanhar o ritmo de vida anteriormente vivido. É a chamada crise do
‘demônio meridiano’. ‘Demônio’, porque
a negatividade se apresenta na fraqueza e confusão experimentada. ‘Meridiano’ porque acontece no meio-dia
da vida, quando o calor e o cansaço são mais fortes. Segundo os entendidos,
esta nova etapa começa em torno dos 40 anos, podendo se estender até os 50 ou
55 anos de idade. Sintomas? A pessoa sente-se perdida, perplexa, sem
entusiasmo e generosidade. Surgem do porão do inconsciente velhos ‘personagens’,
até agora reprimidos e desprezados, gerando perturbação e se não se tomar
cuidado, monotonia e mediocridade.
A primeira parte da vida tentou-se construir, o
próprio ‘eu’. Para isso foi preciso
reprimir uma diversidade de sentimentos e emoções que, à primeira vista,
pareciam equívocos, oblíquos e reprovados. Talvez, até se imaginava que, desse
modo, ficariam eliminados. Coitados de nós! Nada do que incomodava foi
desfeito! O único que fizemos foi empurrar, ainda mais, como trastes velhos e
para porões mais profundos, registros negativos que continuam escondidos,
mas bem presentes e atuantes.
Nesta segunda parte da vida essas realidades
escondidas e reprimidas, sem querer, vêm a tona. Ninguém consegue fugir
definitivamente de si próprio! A vida nos convida a construir sempre a verdade
e olhar face-a-face as ‘sombras’ que
rejeitamos, para integrá-las sabiamente no nosso consciente, completando o
nosso verdadeiro ‘eu’. Realmente
levamos tesouros em vasos de barro!
Entrar nesse período da vida, a meia-idade,
corresponde a um novo nascimento. Tirar as máscaras, tão habilmente cultivadas,
e se apresentar pobremente na própria fragilidade que anseia por ser, gratuita
e evangélica, não é fácil!
Como integrar os novos (ou velhos?) personagens
descobertos? Eis a nova tarefa para esta nova fase da vida. O consciente
precisa integrar, cada vez mais, o inconsciente (pessoal e coletivo) e
torná-lo, de algum modo, mais claro e unificado. Negando nossa realidade
sombria perdemos nossas raízes, o equilíbrio emocional e uma visão mais misericordiosa
da vida! Quando nos assomamos a essa realidade imensa do inconsciente, nos
integramos e unificamos, pois nos fazemos senhores de nós mesmos. É dar nome
aos ‘bichos’ e ‘monstros’ que nos habitam... Foi assim que fez o nosso velho
pai Adão; dando nomes aos ‘animais’, os dominava!
Continuemos com o testemunho dessa nossa amiga ‘formadora’,
espantada do surgimento desta sua realidade sombria:
Há vários anos
dirigia tranquilamente o carro; ultimamente, o carro é sinônimo de medo,
insegurança e incerteza. Todo o meu ser parece estar completamente
desestruturado e desconjuntado. Sinto um nervosismo total! Outro dia quando
alguém me pediu uma carona até a rodoviária surpreendi-me dizendo: ‘Vamos de
ônibus! Eu volto andando pra fazer um pouco de exercício físico!’ Era pura
mentira! A verdade é que tinha medo de dirigir o carro e voltar sozinha...
E continua:
Vocacionalmente sinto-me insegura, vazia. Faço as coisas mais por obrigação do que por devoção! O que está
acontecendo comigo? Pergunto-me e não obtenho respostas a não ser uma maior
inquietação e angústia. É como um calafrio perpassando-me por dentro. Deus
parece ter ‘sumido’ da minha vida; sinto-me punida por minhas faltas passadas.
Eu sei que Deus é bom, mas são esses os ‘bons’ pensamentos que vêm na minha
cabeça! Só esses!...
Como religiosa me pergunto se ainda
valho alguma coisa. Questiono se o que fiz até
agora foi válido ou se realmente vivi um belo sonho onde tudo, agora, acabou.
Sinto-me totalmente incapaz! Pra dizer a verdade, sinto mais incapacidade para
o bem do que para o mal. Gasto muita energia para fazer aquilo que deve ser
feito e não fazer o que não deve ser feito. Parece que perdi toda capacidade de
sonhar e de realizar grandes coisas pelos outros. Enfim, estou ficando
mesquinha, medíocre e ranzinza. Encontro-me, muitas vezes dizendo ‘não posso!
Não tenho tempo’! Meu Deus, onde está minha gratuidade evangélica?...
A desolação (escuridão, desânimo, fechamento,
solidão, incapacidade para amar) faz parte da vida e pode nos ensinar muito! A
crise da meia-idade, encontro inesperado com as realidades sombrias que nos
habitam, é doloroso, mas pode ser um trampolim para uma vida de fé mais adulta
e coerente. No tempo da desolação é preciso perseverar e não desistir!
Depois da tempestade vem sempre a bonança!
A
afetividade, nesta fase, é sentida no seu realismo. Acabaram-se os sonhos, mas
não as paixões. Até amores escondidos podem aparecer a qualquer momento
tentando dar sentido ao marasmo interior experimentado. Que fazer?
Diversas causas podem acrescentar maiores efeitos a
essa experiência de entrada nos quarenta anos de idade... Cansaço, depressão, desânimo podem fazer fermentar,
ainda mais, todo esse caldo natural que a vida, na sua estranha sabedoria, nos impõe
e convida a superar integrando.
Lembra daquela mulher samaritana no poço de Jacó? Era
mais ou menos meio-dia diz o velho São João (Jo 4, 6). Hora de grande calor, cansaço e suor, mas também de luz total e
iluminação! Hora de purificação e
de grandes decisões! Como evangelizar não só nosso consciente mas também
o inconsciente com todos os personagens ambíguos que nele habitam?
O Verbo se fez carne e habitou no meio de nós, na nossa pobre condição humana. Pela encarnação Ele assumiu
toda a realidade humana, iluminando-a e salvando-a. Conhecer a própria sombra, nosso
lado mais ambíguo, acolhê-lo e apresentá-lo confiante ao Senhor da Vida é experimentar
a salvação trazida pelo Senhor Jesus, que gratuitamente se aproximou dos
pobres, paralíticos, leprosos, abandonados e marginalizados, fazendo-os
assentar no banquete do Reino.
Esta segunda
metade da vida nos convida a sermos mais evangélicos também conosco mesmos!
Uma pergunta: Conte sua experiência
nessa fase da vida...
Texto muito bom. Boa reflexão. Abraço. Patricia Coutinho
ResponderExcluirPe. Ramon querido
ResponderExcluirComo as vidas dos seres humanos podem ser tão surpreendentemente parecidas. Como temos os mesmos sofrimentos, as mesmas dúvidas, as mesmas personagens ambíguos habitando dentro de nós. Que maravilha podermos compartilhar tudo isso com internautas que buscam se formar e informar a respeito da sua caminhada na fé. Deus seja louvado. Obrigada, Pe. Ramon por nos ajudar em busca da Terra Boa, através de seu blog Terra Boa. Thereza
Somos conduzidos à integração de nossos opostos (luz/sombra) para que a COMPLETUDE se realize em nós e possamos ser INTEIROS. Plenos.
ResponderExcluirA primeira metade da vida solicita, realmente, a realização do Ego: os estudos, o trabalho, o desenvolvimento dos potenciais, galgar os degraus da profissão, estabelecer-se financeiramente etc são tarefas que ocupam, e devem ocupar, essa fase da vida.
Digo "devem" porque tive contacto prolongado com o resultado da "falência" dessa realização: Pelo começo dos anos 80, atendi no consultório várias pessoas que tinham uma história em comum: voltavam da Índia, para onde foram a fim de seguir o então gurú da moda: Rajneesh.
Eram jovens, na época, sonhadores, encantaram-se com a proposta da imersão em uma cultura e em ritos totalmente "exóticos", em práticas desconhecidas para o Ocidente.
Cada um, por seu motivo, decidiu voltar. Foi essa volta que acompanhei. Traziam uma imensa angústia, vinham deprimidos, inseguros, perdidos. Nada parecido com o que se esperaria de quem havia passado anos em práticas espirituais...
A angústia imediata de todos tinha uma só expressão: "E agora? Não estudei, não me empreguei, não tenho casa, aposentadoria, não tenho vínculos sólidos, não tenho espaço na vida..."
De fato, fizeram na primeira metade da vida a tarefa da segunda metade, essa sim, voltar-se para a "Alma", no mais amplo sentido. (Não vou explicar...)
Agora, essas tarefas exigiam realização, mas já em circunstancias bem menos favoráveis...
Da mesma forma, os que se empenham nas tarefas do ego na primeira metade da vida, vão sentir o profundo apelo da realização da "Alma" quando o tempo chega.
Esse apelo expressa-se na manifestação da sombra - aquilo em nós que estava longe da consciência. E num profundo sentimento de vazio. Claro que ficou vazio... Aquilo que se desejava, ou bem ou mal foi alcançado, ou passou o tempo propicio e não mais será. Os ideais, bem ou mal, foram vividos. Qual é o sentido de desejar o que já se tem ou o que não mais se terá?
Para muitos é complicado esse luto. Vemos mulheres de meia-idade esticando-se e recheando-se de botox, homens grisalhos comprando motocicletas e namorando meninas mais novas que suas filhas... Para fingir que o tempo não passou. A passagem do tempo é grave para os horizontes estreitos.
A manifestação da sombra, porém, tão temida e evitada, é a via régia para a completude. A sombra precisa vir, manifestar-se e, assim, ser conhecida e integrada. Mas não "de qualquer modo". A tarefa é a INTEGRAÇÃO CRIATIVA DA SOMBRA.
Usando o mesmo exemplo da religiosa do texto: não é caminho propicio desta hora da vida a manutenção de seus sintomas atuais. Mas, da mesma forma, não é a melhor busca e o melhor trabalho esforçar-se para "ser como era": uma mulher forte, assertiva, autônoma, livre.
A sombra que emerge é de uma imensa fragilidade, insegurança, medos, incertezas... Integrá-la criativamente não significaria, agora, sem perder as qualidades da força que sempre usou para abrir caminhos, aproximar-se de sua delicadeza essencial, da capacidade de abandonar-se em vulnerabilidade nas mãos de Deus, de ampliar sua confiança no outro, de aprender a deixar-se amparar, cuidar? (Claro que é apenas conjectura, já que não conheço a pessoa).
Bem, chega, rs... de certo que é um longo - e tão belo caminho, enfim...
"Meu Rei, houve um tempo em que eu não estava pronto para Ti.
Todavia, sem que eu pedisse,
Entraste em meu coração como um desconhecido qualquer,
E marcaste os momentos fugazes da minha vida com Teu selo de eternidade.
Hoje, quando me deparo ao acaso com esses momentos
E neles vejo a Tua marca,
Percebo que eles ficaram espalhados no pó
Misturados com a lembrança de alegrias
E tristezas dos meus dias esquecidos.
Tu não desprezavas os meus brinquedos de criança pelo chão,
E os passos que eu ouvia em meu quarto de brincar
São os mesmos que hoje ecoam de estrela em estrela.
Rabindranath Tagore
Muito bom o texto. Estou no meio dessa fase. Cada etapa da vida tem seus aspectos positivos e também os desconfortos. Envelhecer com dignidade deve ser o ideal. Percebo a limitação física que se aproxima, mas a impetuosidade e os conflitos vão cedendo lugar a serenidade e a temperança. Os desejos já não são ambiciosos, mas a imunidade às frustrações é maior. A maturidade é um grande valor que nos aproxima da verdade. Creio que a maturidade também é uma característica dos grandes santos da Igreja.
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