“O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)
Ao iniciarmos
a Quaresma, um lugar que continuamente será citado e que vai aparecer com
frequência nos textos, reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que faz parte de
nossas vidas: espaço de silêncio, de busca, de despojamento; lugar que nos faz
tomar consciência das coisas essenciais que dão sentido à nossa existência;
ambiente privilegiado para o encontro com o Deus.
Como humanos
precisamos passar por experiências de despojamento, de esvaziamento, de vulnerabilidade,
de crise para poder suavizar nosso coração e fazer-nos mais expansivos.
O “deserto” é o lugar das perguntas e do discernimento;
ele nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças. O deserto
nos conduz para o Fundo estável e sereno, nossa “casa” e verdadeira identidade.
Quando o percurso é vivido adequadamente, é provável que no final possamos dizer
como Kierkegaard, “eu teria me afundado se
não tivesse ido ao Fundo”. Se somos sinceros, adentrar-nos em nosso “eu profundo” não é fácil
e até sentimos medo.
A liturgia quaresmal revela-se como uma
mediação privilegiada para potencializar nossa interioridade, para que a
expansão da vida seja possível. Tal experiência oxigena a nossa mente e implode
nosso conformismo e revela-se como fonte inspiradora que nos liberta da rotina.
Somos peregrinos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de respostas
que deem sentido à existência.
O caminho para Deus passa pela experiência mais profunda e autêntica
de si mesmo. Buscar
o Deus que “está dentro de mim, enquanto
eu estou fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação direta com nosso
interior; dissolver bloqueios afetivos já solidificados.
Foi no deserto
onde Jesus descobriu o que move verdadeiramente o coração do ser humano. Jesus tomou consciência de
duas forças
ou dinamismos
que atuam no coração humano: um de
expansão, de saída de si, de vida aberta e em sintonia com o Pai e com os
outros; outro, de retração, de
auto-centração, de busca de poder, prestígio, vaidade...
Jesus impulsionado
pelo Espíritos sentiu as forças do mal: “foi
tentado por satanás”, “o adversário”, a força hostil a Deus. Na tentação des-vela
o que há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a
Deus ou de cumplicidade com a injustiça.
Qual dos dois dinamismos internos alimentamos?
Em todo processo de crescimento vamos nos deparar
com a presença dos “animais selvagens” e dos “anjos” em nosso eu profundo. É
assim que vislumbramos quando nos adentramos em nosso mundo interior. “Animais
selvagens”:
material psíquico reprimido que não aceitamos em nosso interior: paixões, traumas,
feridas, instintos, impotência e fragilidade... É a “sombra” que vamos arrastando, e que nos assusta enquanto não a
reconhecemos em sua totalidade.
“Anjos”: forças
internas positivas, consolos – externos e internos – que pacificam, animam,
iluminam, fortalecem e unificam...
“Animais selvagens e anjos” nos “obrigam” avançar para
nossa verdade profunda, tirando-nos da superfície de nós mesmos, ou da nossa “zona
de conforto”.
O amadurecimento humano implica acolher nossa realidade,
também aquela que aparece sob disfarces negativos. Lidar com tais “feras”
requer dialogar com elas, para amansá-las.
A espiritualidade cristã mostra que em nossas feridas
cicatrizadas encontramos a verdadeira vida. Tradicionalmente,
fomos coagidos a viver uma espiritualidade
que `matava´ ou prendia os “animais selvagens”, e a levantar
junto deles um edifício instável de “grandes ideais”. Daí o medo das
feras e a frustração com nossas misérias. Tudo quanto reprimimos explode. Os “animais
selvagens” tem muita força, nos obrigam a fugir constantemente de nós.
Os “anjos” permitem
acolher e domesticar os “animais selvagens”, tomando consciência de que o nosso
interior é forte e se expande.
E assim, estaremos mais preparados para a “travessia” em
direção à Páscoa.
Vale uma boa reflexão!!! Grata por compartilhar. Impossível não recordar-me do senhor, Pe. Ramón, diante destas dimensões de "animais selvagens e Anjos" que existem em todos nós. Boa caminhada Quaresmal a todos. Abraço grande e fraterno.
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