“...e nós viremos e faremos nele nossa morada”(Jo 14, 23)
Continuamos com o discurso de despedida de Jesus, depois da Última Ceia. O tema do domingo passado era o amor manifestado na entrega aos demais. Terminávamos dizendo que esse amor era a expressão de uma experiência interior, relação com o mais profundo de nós mesmos que é Deus. O que significa essa vivência íntima?
Deus não é um ser separado que está em alguma parte da estratosfera, mas o fundamento de nosso sere de cada um dos seres do universo. Tudo está admiravelmente condensado e expresso na frase com a qual se inicia o evangelho de hoje: “viremos a ele e faremos nele nossa morada”. O ser humano está habitado por Deus.
Deus e Jesus são o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa identidade mais profunda. Deus Trindade habita tudo e em tudo se manifesta; envolve tudo e em tudo está presente. É o que experimentam e proclamaram os místicos: “Meu Eu é Deus e não reconheçooutro Eu que a Deus mesmo” (S. Catarina de Gênova). E S. João da Cruz escreve: “A alma mais parece Deus que alma, e ainda é Deus por participação”.
Não se trata, portanto, de que Deus habite unicamente naqueles que cumprem a palavra de Jesus, num retorno à religião dos méritos e das recompensas. Deus habita já todos os seres: nada poderia existir “fora” d’Ele. Tudo é morada de Deus.
Segundo S. Inácio: “Deus habita nas criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva. Do mesmo modo em mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o entender. E também fazendo de mim o seu templo” (EE. 235).
Tudo está inundado de Deus; tudo é sagrado, nada é profano.
Deus não permanece exterior a nós, mas habita no mais profundo de cada um; somos o que somosdevido à presençade Deus em nós. A dignidadee o significadoúltimo de cada ser humano não provém dele mesmo, mas dapresençade Deus em seu interior. Tudo que somos e temos é manifestação de sua força, bondade e amor.
Ao abraçarmos uma pessoa, estamos tomando nos braços não apenas os seus limites e fragilidades, mas também o seu infinito mistério: Deus. Igualmente, distanciar-se do outro é me afastar de Deus.
Jesus viveu uma profunda identificação com o Pai: “Eu e o Pai somos um”. Essa presença de Deus em nós não altera em nada nossa individualidade. Somos totalmente nós mesmos e totalmente de Deus.
Deus não tem que vir de nenhum lugar para estar no mais profundo de nosso ser. Está aí desde antes de existirmos. Não existe “alguma parte” onde Deus não possa estar. Deus torna possível nossa existência. Deus não é esse Outro ao qual temos que ir ou esperar que venha.
Os místicos ousam dizer:“ temos Deus dentro de nós; é tão unido a nós que Ele é a nossa própria profundidade”.
“Deixar Deus ser Deus em nosso interior” significa entrar no fluxo da dinâmica divina, ou seja, viver encontros divinizados, expressando palavras e atos divinizados...
O Espírito é o garantidor dessa presença dinâmica do Pai e de Jesus em nós: “Ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”. Ele é o nosso “mestre interior” que nos irá conduzindo até a verdade. Se pudesse tirar de mim o que há de mim, ficaria Deus; se pudesse tirarde mim o que há de Deus, ficaria nada.
O “shalom” judaico é muito mais rico que o nosso conceito de paz. A paz, de que fala Jesus, tem sua origem no interior de cada um. Paz que supera toda razão, porque nasce de um “lugar” que está mais além da razão, mais além da mente, na compreensão do Mistério que somos, e que não se vê afetado pelo que ocorre em nosso eu.
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