A missão de férias em JAN/2020 teve um novo sabor, pois além de estar pela primeira vez no Amazônas, o trabalho seria junto aos Warao, etnia de indígenas venezuelanos, chegados ao Brasil desde 2016. Junto com o companheiro Wesley Heleno, houve a aproximação de uma realidade complexa: “indígenas imigrantes” ou “imigrantes indígenas”?
Os Warao estão num limbo entre as políticas migratórias e as políticas indigenistas, entre as competências difusas de organismos internacionais, Governos Federal, Estadual e Municipal, entidades do terceiro setor e diversas igrejas. Meu primeiro contato com os Warao foi em DEZ/2018, na missão de férias em Roraima. Agora em Manaus, a convivência mais estreita e a escuta dos problemas marcou-me de modo profundo: os olhares eram firmes, mas havia um certo desalento. Notei uma maior fragilidade que os migrantes e refugiados não-indígenas da mesma Venezuela que sofre a maior crise humanitária da América Latina.
Em Manaus os Warao estão concentrados principalmente num abrigo coletivo mantido pela Prefeitura, no bairro Alfredo Nascimento, periferia da cidade. Este abrigo está localizado na Área Missionária Santa Margarida de Cortona, confiada à Companhia de Jesus, com a atuação de dois padres e um irmão jesuíta que prestam assistência religiosa e humanitária aos indígenas. De maioria católica, os Warao foram acompanhados principalmente por Frades Capuchinhos no delta do Rio Orinoco, região de origem desta etnia ancestral na Venezuela.
O conjunto residencial que serve de abrigo, composto por cinco blocos de dois andares, acomoda cerca de 500 indígenas que vivem em pequenos apartamentos, onde dezenas de pessoas vivem amontoadas. Somente no primeiro bloco existe água, sendo necessário o transporte em baldes para os demais blocos e nos andares superiores. Esgoto a céu aberto em frente do prédio, muita sujeira, lixo, mau cheiro e a superlotação fazem do abrigo um lugar que causa náuseas no primeiro contato. Tais condições desumanas acirram os ânimos e causam conflitos constantes entre famílias, resultando na expulsão dos que incorrem nas constantes brigas.
As mulheres e crianças pedem dinheiro nas ruas do centro de Manaus, uma vez que já na Venezuela grande parte dos Warao viviam da mendicância nas cidades. Crianças e adolescentes sem escola e perspectiva de vida, alguns já cooptados pelo tráfico e ameaçados por dívidas de drogas. O alcoolismo vem completar o quadro difícil do abrigo coletivo, notificado como “situação insustentável” pelo Ministério Público Federal em 2019, com recomendações de transferência para acomodações por família feitas ao Governo Estadual e Municipal. Nenhuma ação ou melhoria até o momento. Os Warao seguem com a morte de duas crianças e um idoso no último ano, em virtude de pneumonia.
Sob a orientação do Ir. Arquelino Xavier, jesuíta com ótima aproximação com os indígenas e um belo trabalho pastoral, conhecemos algumas lideranças e caciques eleitos por blocos. Nossa presença concentrou-se na convivência, escuta, mediação de conflitos e assessoria na elaboração de currículos para empregos. Desenvolvemos ações pontuais com foco nas crianças e jovens, público mais vulnerável da comunidade: preparação da Missa que ocorre uma vez ao mês no abrigo, jogos e esportes, Cine-pipoca e Noite Cultural com danças e músicas típicas. Nestes eventos contamos com a ajuda e doação dos membros das comunidades da área missionária, promovendo a integração dos Warao com os jovens brasileiros. A Noite Cultural foi ocasião da comemoração dos 15 anos de uma jovem indígena, com direito a bolo de festa e lanche preparado pela comunidade.
Nestes dias senti o coração alargado, muitas vezes pela dor, ao presenciar o sofrimento e a humilhação destes irmãos indígenas. E também pela alegria, ao perceber as singelas Epifanias do Senhor nos sorrisos das crianças e na alegria dos jovens. Estar ao lado de um grupo humano tão fragilizado e empobrecido, fez-me sofrer a impotência diante de um quadro complexo com atores múltiplos. Sentia-me indignado, revoltado muitas vezes, mas ao fundo consolado ao encontrar o próprio Cristo, como nos diz o Papa Francisco: “(...) se ousarmos ir às periferias, lá o encontraremos: ele já esta lá. Jesus antecipa-se no coração daquele irmão, em sua carne ferida, em sua vida oprimida, em sua alma sombria. Ele já está lá.” A consolação provinha do estar exatamente onde o Senhor me pede: ao lado dos excluídos e descartados deste mundo. Pois é justamente por eles que o coração misericordioso do Senhor bate mais forte: o amor universal de Deus se intensifica onde a miséria desumaniza.
0 comments:
Postar um comentário