Somos uma carta de Cristo, escrita pelo Espírito do Deus vivo. A vida de Jesus tornou irreversível o amor de Deus por nós. O Espírito de Deus foi derramado sobre toda carne e age no fundo do coração de todo ser humano, com "gemidos", sugestões, movendo a todos na direção dos valores do evangelho.
Nossa realidade: graça e pecado, luz e sombras; somos vasos de argila carregando um tesouro. Na leitura desta realidade humana, vamos encontrar inevitavelmente textos sobrepostos: textos claros escritos pelo Espírito Santo, e textos obscuros e sombrios, escritos por outra mão. A superfície da terra apresenta uma paisagem homogênea de terreno, mas desde que comecemos a cavá-la, num corte vertical, descobrimos camadas superpostas de aluviões. Assim a vida de cada um.
A ação do Espírito encontra-se na vida de todo ser humano, por mais devastada que se apresente a superfície, por mais que a aparência nos fale de uma distância de Deus. O Orientador espiritual, como teógrafo, deve estar atento a este sopro de vida, na história do exercitante, ainda que pareça muito tênue.
Esta atenção paciente e perseverante deve ser tanto maior quanto a expressão da vivência profunda faz-se às apalpadelas. No meio de muito lixo e entulho pode aparecer, subitamente, uma pepita de ouro que o teógrafo não deixar de colher com respeitosa reverência pela ação do Espírito que aí se manifesta.
Igual atenção deve ser dada a diferentes fases ou períodos da vida. Em certos momentos as marcas de Deus podem ter sido fortes, e em outros, as marcas do pecado. Às fases de intenso fervor sucedem-se fases de crises existenciais, formando os altos e baixos de nossa resposta humana ao Deus fiel. Nunca o teógrafo encontrará um texto retilíneo; seu papel é encontrar o veio de ouro que perpassa no meio da montanha de areia, cascalho e segui-lo.
Quando Inácio percebe que as marcas de Deus sobre a sua vida podiam ser lidas, sentiu como que seus olhos se abrindo e ficou maravilhado com o que começava a enxergar: "até que uma vez se lhe abriram um pouco os olhos e começou a maravilhar-se desta diversidade" (Aut. 8). Esta foi sua primeira experiência de ciência espiritual.
"Recebida não pouca luz desta lição, começou a pensar mais deveras em sua vida passada e quanta necessidade tinha de se penitenciar dela" (Aut. 9). Compreendida esta primeira lição, Inácio é levado a pensar em sua vida passada, a ler passagens de sua vida que sente não terem sido escritas por Deus, mas por outro, e em que direção o tinham levado.
Aos poucos, seus desejos mundanos vão se dissipando: "Já se ia esquecendo dos pensamentos passados com a força dos santos desejos que alimentava, quando uma visita do céu os confirmou desta maneira. Estava, uma noite, acordado, quando viu claramente uma imagem de Nossa Senhora com o Santo Menino Jesus. Com esta vista, por espaço notável, recebeu consolação muito excessiva e ficou com tanto asco de toda a vida passada e especialmente dos pecados da carne que parecia terem-lhe tirado da alma as imagens que antes tinha nela pintadas" (Aut.10).
Inácio usa, curiosamente, a imagem do desenho ou da inscrição, de marcas deixadas pelo mau espírito, e é capaz de olhar com tranquilidade para as páginas obscuras de sua vida que lhe causavam medo. Seu passado fora pacificado.
Inácio já consegue ler a escrita de Deus no coração. Em seguida, começa a escrever: "Vindo a gostar muito daqueles livros, ocorreu-lhe a ideia de tirar deles um resumo dos pontos mais essenciais da vida de Cristo e dos Santos. Assim, pôs-se a escrever um livro com muita diligência... Traçava as palavras de Cristo com tinta vermelha e as de Nossa Senhora com tinta azul" (Aut. 11). Inácio começa a copiar passagens dos livros tal e qual, sem ainda nenhum toque pessoal, a não ser a escolha das tintas.
No nº 18 da autobiografia, notamos algum progresso: em Manresa "determinava ficar em um hospital uns dias e anotar alguns pontos em seu livro que levava muito guardado e que muito o consolava". Já não se trata mais de copiar, mas de anotar alguns pontos, frutos de suas experiências pessoais e reflexões. Aqui temos o início da redação do livro dos Exercícios.
Passamos do ler para o escrever. Inácio escreve o que vai aprendendo na "escola de Deus", e percebe que não é um caminho normal. O normal seria ter um acompanhante neste itinerário que o ajudasse a descobrir as marcas de Deus, os possíveis enganos e ilusões, e fosse introduzindo no mistério.
Nos Exercícios Espirituais Inácio não recomenda explicitamente a escrita, mas recomenda vivamente a partilha com o orientador: "É muito proveitoso que aquele que orienta os Exercícios, sem querer perguntar nem saber os pensamentos ou os pecados do exercitante, seja informado fielmente das moções e pensamentos que os diferentes espíritos despertam nele. Porque, conforme julgar mais ou menos proveitoso, pode dar-lhe exercícios espirituais mais apropriados e adaptados às suas necessidades objetivas" (EE 17).
O Orientador deve, pois, ser informado fielmente sobre as consolações, desolações e moções dos diversos espíritos. A teografia possibilita a mistagogia.
Podemos então, dizer que a verbalização das experiências é também uma maneira de escrever. O esforço para verbalizar para um outro o vivido e experimentado, é uma maneira de registrar a experiência. Pela verbalização da experiência, o exercitante entra num processo interior de escuta e atenção ao Espírito que escreve no coração. O exercitante vai tornando-se progressivamente sensível ao Espírito e registrando suas marcas.
O encontro com Deus leva a escrever uma nova história pessoal e coletiva, irradiando os valores do evangelho num mundo marcado pelas estruturas de pecado.
Padre Ramón, gostei muito do texto. Em minha experiência com os Exercícios Espirituais tenho dado especial atenção ao registro escrito. Por meio desse registro, sinto que ressignifico a Palavra lida e "ressoada" em mim. Abraços. Ana Luzia.
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