A CIÊNCIA DAS COISAS ESPIRITUAIS... (cf. Pe. Ulpiano V. SJ)



Os números 64 e 65 da autobiografia de s. Inácio de Loyola nos fornecem uma boa introdução ao tema da ciência das coisas espirituais. Inácio encontra-se em Salamanca, após ter iniciado seus estudos em Barcelona e tido problemas com a Inquisição, em Alcalá.

Uns 10 ou 12 dias, após sua chegada a Salamanca recebe um convite do sub-prior dos dominicanos para almoçar com os frades. Após o almoço, "o sub-prior com muita afabilidade, começou a dizer como tinham deles boas novas e de sua vida e costumes..." e que gostaria de saber destes pontos mais em particular. Começou a perguntar o que tinham estudado ao que o peregrino respondeu singelamente: 
- "Entre todos nós, o que mais estudou sou eu", e lhes declarou o pouco que estudara e o pouco fundamento com que o fizera.
- "Mas então, o que pregam?
- "Nós, diz o peregrino, não pregamos, mas conversamos com alguns familiarmente sobre coisas de Deus..."
- "Mas, pergunta o frade, de que coisas de Deus falam?"
- "Falamos, responde o peregrino, ora de uma virtude, ora de outra com louvor; e com repreensão ora de um vício, ora de outro".
- "Os senhores não são letrados, diz o frade, e falam de virtudes e de vícios: ora, disto ninguém pode falar se não de duas maneiras: ou por letras ou pelo Espírito Santo. Não por letras, logo, pelo Espírito Santo".

Inácio desconfia de uma cilada e se cala porque não ousa dizer que tudo o que fala aprendeu-o com o Espírito Santo. O que Inácio chama de ciência das coisas espirituais não satisfaz o frade. Esse episódio na vida de um santo, nos leva, hoje à pergunta sobre o "espiritual". O que é o "espiritual?Onde se aprende a ciência espiritual?     

Hoje temos a impressão de que a espiritualidade é um corredor meio escuro e confuso, comprimido por duas paredes: de um lado a teologia e de outro a psicologia. Julga-se que o teólogo está muito mais gabaritado a falar das coisas de Deus, e o psicólogo muito mais capacitado a elucidar as confusões interiores do coração humano do que uma pessoa espiritual.

Poderíamos ouvir a mesma pergunta do sub-prior a Santo Inácio, ou a pergunta que os inquisidores lhe fazem um pouco mais adiante: "Não sendo letrado como ousa determinar quando um pensamento é pecado venial e quando é mortal"? (Aut. 68): Você não fez teologia nem psicologia como ousa falar das coisas de Deus?

Isto leva a espiritualidade a ser considerada como um bem de consumo, exclusivo de pessoas privilegiadas que podem dispor de tempo e lazer para dedicar-se as coisas espirituais. A espiritualidade não faria parte da cesta básica do povo de Deus, do feijão com arroz de cada dia. Mas seria um bem de consumo de certa classe elevada, capaz de dotar-se de uma antena parabólica para captar as emanações do Transcendente.

Dedicar-se as coisas de Deus torna-se, para muitas pessoas, um desejo sucessivamente protelado para o futuro, quando o sujeito poder  ter a disponibilidade de tempo e lazer para dedicar-se as coisas espirituais, com a grave consequência de levar uma vida sem espiritualidade ou uma espiritualidade sem vida, o que se constitui numa situação diametralmente oposta ao que a Sagrada Escritura nos fala sobre o Espírito Santo: Não há vida sem Espírito, nem Espírito sem vida.


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