“E imediatamente o Espírito impeliu Jesus para o deserto...” (Mc 1,12)
A Quaresma sempre indica um tempo especial, de crise-crescimento, de discernimento. E qual é o crescimento-maturação que este tempo nos propõe?
O discernimento implica em uma escuta atenta com o mesmo Espírito que atuava em Jesus. É o Espírito, que nos conduz ao deserto para “desintoxicar-nos” de um modo de viver atrofiado, imposto por um contexto social centrado na busca de poder e prestígio. É preciso sair de nossos espaços rotineiros, para os amplos espaços do deserto, para ali viver de novo o encontro com a Voz e a Força que nos devolvem à vida, com outra inspiração.
Neste ano, a CF está centrada no tema do “diálogo”; e o deserto quaresmal ajuda a limpar os canais de comunicação obstruídos pelo excesso de gordura do nosso “ego”: auto-centramento, interesses, vaidades... O diálogo implica num des-centramento, uma saída de si, para escutar e acolher o outro na sua diferença. O diálogo entre diferentes nos humaniza. Dialogar é abrir-nos ao outro, sair do nosso próprio mundo, criar vínculos com outras pessoas... multiplicando assim os pontos de vista, e enriquecer-nos humanamente.
Todo 1º domingo da quaresma a liturgia nos conduz ao deserto, onde Jesus foi “tentado”.
As tentações de Jesus foram interpretadas num sentido moralizante: Jesus nos queria dar o exemplo para nos ajudar a superar nossas tentações cotidianas. As tentações não são tanto uma “prova” a superar quanto um “projeto” a ser discernido.
Jesus, depois do batismo, buscou o deserto para um tempo de oração, diante do Pai que o proclamou seu Filho. Tempo de confronto interior. Como viver a missão e a partir de quê lugar? Buscar o próprio interesse ou escutar a Palavra do Pai? Como atuar: Dominar ou servir?
As tentações são, pois, expressão de dois tipos de messianismos, dois projetos, duas lógicas opostas:
* Por um lado, a auto suficiência e segurança a partir de cima, um messianismo triunfalista, evitando conflitos com o poder político e religioso, alheio ao sofrimento do povo, adaptados ao “sistema”, servido antes que servir.
* Por outro lado, a solidariedade a partir da margem, da periferia da sociedade política e religiosa, a partir do povo vivendo a filiação e a confiança no Pai, num estilo de simplicidade e pobreza alternativo ao “sistema”, optando por servir antes que ser servido. É a lógica de inclusão na linha do Servo de Javé e dos grandes profetas de Israel.
Fruto da experiência batismal de sentir-se Filho e do discernimento do deserto, Jesus elege a lógica da solidariedade e do serviço, a partir dos últimos. Jesus se deixa conduzir pelo Espírito divino em direção às margens excluídas, às “periferias existenciais”.
O messianismo de Jesus se manifesta como “diferente” daquilo que muitos esperavam, pois ele começa a falar e a agir a partir da margem geográfica, cultural, religiosa e econômica da Palestina: a Galiléia.
Jesus iniciou uma vida itinerante e passou a viver a partir de um sonho: a utopia do Reino. Vivendo no meio de uma realidade conflituosa, descobre a chegada da hora de Deus e a anuncia ao povo: “O tempo já se completou e o REINO de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1,15).
Enquanto, todos tinham os olhos voltados para o centro (para o Templo de Jerusalém, onde era elaborado o que ia se expandir pelas sinagogas), Jesus revela sua presença nas “periferias” do mundo. A partir daí todos nós também devemos dirigir constantemente o nosso olhar para as “novas periferias”, lugar onde Ele continua nos convocando.
“O discípulo-missionário é um des-centrado: o centro é Jesus Cristo que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais...” (Papa Francisco)
O quê significa “fronteiras geográficas e existenciais”? Sair dos limites conhecidos, de nossas seguranças para adentrar no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis...
A periferia passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo”, por obra do Espírito. Ali aparece o broto original do “nunca visto”, que em sua pequenez de fermento profético torna-se um desafio ao imobilismo petrificado e um questionamento à ordem estabelecida.
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