MISTÉRIOS DA VIDA DE CRISTO NOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS... (cf. Pe. Carlos Palácio, SJ)

 


"  "Mistérios". É assim que designa S. Inácio o conteúdo objetivo das contemplações que ocupam a quase totalidade do itinerário dos Exercícios. Conteúdo que coincide com o que constitui o núcleo central do NT: vida, paixão, morte e Ressurreição de Jesus.

     

  Não é difícil perceber que por trás da semelhança aparente de linguagens se escondem concepções diferentes. A perspectiva de Marcos, ao criar o gênero literário "evangelho", não é a mesma do que a referência de Inácio à "história" nas contemplações dos Exercícios ou a preocupação da exegese moderna de resgatar o "Jesus histórico" por entre os escombros ou camadas da crítica histórica. 

 

1. Existe um abismo entre uma aproximação espontânea e uma abordagem crítica dos evangelhos. A de Inácio estaria entre as espontâneas, o que não significa que seja incompatível com a exegese crítica. Quais as diferenças?

 

a) Dificuldades. A nossa mentalidade está marcada pelos resultados (e pressupostos!) desta maneira moderna de abordar o texto evangélico. Queiramos ou não, somos filhos da nossa época. E hoje ninguém ignora que os evangelhos não são "biografias" de Jesus, no sentido atual da palavra. Todos temos uma noção da complexidade histórica e literária dos textos do N.T. (vida das comunidades, formas diferentes, gêneros literários, trabalho de redação, etc.).

 

Para quem conhece como "nasceram os evangelhos", só pode parecer ingênua a preocupação de "narrar fielmente a história" (EE 2), como se os relatos fossem a transcrição direta dos acontecimentos. Como contemplar ou, como diz Inácio, como "trazer a história da coisa que tenho que contemplar" (EE 102), quando se sabe que para a exegese o valor histórico dos relatos é um terreno minado e movediço?

 

Mas se a visão de Inácio é pré-crítica, não é "ingênua". Os pressupostos determinam finalmente duas maneiras diferentes de abordar a vida de Jesus. A primeira diz respeito ao lugar ou à ótica com a qual se lê a vida de Jesus. A segunda refere-se à maneira de entender a história de Jesus.

 

b) O N.T. é a confissão eclesial da fé; olhar da fé pós-pascal, capaz de resgatar na vida de Jesus toda a sua densidade de sentido; é o olhar de uma comunidade eclesial, pois ela é depositária da "memória viva" de Jesus, e que torna visível a continuidade entre o tempo do Jesus terrestre e o tempo do Senhor ressuscitado. Jesus não se confunde com a experiência da comunidade, nem a ela pode ser reduzido. Mas, também, não pode ser separado dela. O N.T. traduz esta inseparabilidade como a história da fé em Jesus Cristo.

 

Para o N.T. não exista uma história neutra de Jesus. Essa vida foi vista, tocada, e contemplada pelos discípulos. Nesse contato vivo com Jesus, foi emergindo a pergunta pela sua identidade, e que só encontrou resposta depois da Páscoa. A história de Jesus sempre exigiu o risco e a aposta por ele. Antes ou depois da Páscoa, a sua vida sempre foi interpretada. Interpretação de acontecimentos reais.

 

Se não houvesse a "história de Jesus" não existiriam os evangelhos. É isso que os distingue dos "mitos". Contudo, os evangelhos não estão preocupados com a reconstrução histórica do passado; não são relatos biográficos. O histórico é muito mais do que o resíduo morto do passado; é a atualidade desta vida e a sua resignificação para a comunidade

 

história de Jesus é inseparável da história da fé da comunidade. Esta é a resposta que dá o N.T. ao problema da diferença dos "tempos". Há uma distância entre o "passado" de Jesus e o "agora" da comunidade, mas o tempo de Jesus é a plenitude do tempo. É o que significa a ressurreição.

 

A "história" de Jesus continua, não como simples prolongação do tempo, mas, como começo novo. O tempo e a história se medem pela densidade deste tempo novo, desse "kairós" que é o acontecimento-Jesus. O acontecido "naquele tempo" (como começa sempre a proclamação do evangelho) pode ser anunciado "hoje" como algo real. A vida de Jesus é "presença" real daquele que vive para sempre. Por isto os evangelhos apresentam a salvação em atos, nas etapas de um itinerário e na totalidade dessa vida.

 

Esta é a originalidade dos evangelhos como "gênero literário" novo. É o sentido desta unidade indissolúvel entre história e fé, passado e presente, terrestre e ressuscitado. Este sentido só pode ser narrado e anunciado a partir da fé pascal. "Seguir" é, nos evangelhos, a maneira de "ser discípulo". Por isto, o itinerário da vida de Jesus é inseparável da gênese da fé em Jesus Cristo.

 

A perspectiva do N.T. é normativa. Por ela devem-se medir todas as leituras, antigas e modernas, da vida de Jesus. O decisivo não é o caráter mais ou menos "crítico" das abordagens, mas, a capacidade de dar razão e de situar-se dentro da totalidade da experiência, tal como ela nos é apresentada no N.T.

 

c) Confronto de leiturasO ponto de partida, como deve ser, é a unidade indivisível entre o Jesus terrestre e o Cristo ressuscitado, experiência da sua presença viva na comunidade eclesial. 

 

Para Inácio esta unidade prévia entre o Jesus histórico e o Cristo da fé é a condição de possibilidade de uma autêntica atualização do mistério de Jesus Cristo. De alguma forma, Inácio é contemporâneo de JesusNão se transportando a um passado quimérico, mas - como ele diz - "trazendo" essa história ao presente real. A experiência de Inácio pela `contemplação´ é extremamente realista. 


As indicações de Inácio, ao longo das três últimas "semanas" dos Exercícios, limitam-se ao essencial do texto evangélico. Nenhuma concessão à fantasia. A cena a ser contemplada é apenas evocada, quase sempre com as mesmas palavras do evangelho. Inácio não faz exegese; limita-se a apresentar o que ele mesmo chama o fundamento da história (EE 2). 

 

Mesmo sendo pré-crítica, a leitura de Inácio é teologicamente certeira. Ele vai diretamente ao âmago do evangelho. E a exegese moderna, que sabe muito mais da pré-história do evangelho, pode perder de vista a totalidade do sentido


Fazendo as contemplações iniciadas estamos em boa companhia!



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