Não é difícil perceber que por trás da semelhança aparente de linguagens se escondem concepções diferentes. A perspectiva de Marcos, ao criar o gênero literário "evangelho", não é a mesma do que a referência de Inácio à "história" nas contemplações dos Exercícios ou a preocupação da exegese moderna de resgatar o "Jesus histórico" por entre os escombros da crítica histórica.
Existe um abismo entre uma aproximação espontânea e uma abordagem crítica dos evangelhos. A de Inácio estaria entre as espontâneas. O que não significa que seja incompatível com a exegese crítica. Quais as diferenças?
a) Dificuldades. A nossa mentalidade está marcada pelos resultados (e pressupostos!) desta maneira moderna de abordar o texto evangélico. Queiramos ou não, somos filhos da nossa época. Os evangelhos não são "biografias" de Jesus, no sentido atual da palavra. Todos temos uma noção da complexidade histórica e literária dos textos do Novo Testamente. (vida das comunidades, formas diferentes, gêneros literários, trabalho de redação, etc.).
Para quem conhece como "nasceram os evangelhos", só pode parecer ingênua a preocupação de "narrar fielmente a história" (EE 2), como se os relatos fossem a transcrição direta dos acontecimentos. Como contemplar ou "trazer a história da coisa que tenho que contemplar" (EE 102), quando para a exegese o valor histórico dos relatos é um terreno minado e movediço?
A visão de Inácio é pré-crítica, não "ingênua". Os pressupostos determinam finalmente duas maneiras diferentes de abordar a vida de Jesus. A primeira diz à ótica com a qual se lê a vida de Jesus. A segunda refere-se à maneira de entender a história de Jesus.
b) O N.T. é olhar da fé pós-pascal, capaz de resgatar na vida de Jesus toda a sua densidade de sentido; é o olhar de uma comunidade eclesial, pois ela é depositária da "memória viva" de Jesus, e que torna visível a continuidade entre o tempo do Jesus terrestre e o tempo do Senhor ressuscitado. Jesus não se confunde com a experiência da comunidade, nem a ela pode ser reduzido. Mas, também, não pode ser separado dela. O N.T. traduz esta inseparabilidade como a história da fé em Jesus Cristo.
Para o N.T. não existe uma história neutra de Jesus. Essa vida foi vista, tocada, e contemplada pelos discípulos. Nesse contato vivo com Jesus, foi emergindo a pergunta pela sua identidade, e que só encontrou resposta depois da Páscoa. Antes ou depois da Páscoa, a sua vida sempre foi interpretada.
Se não houvesse a "história de Jesus" não existiriam os evangelhos. É isso que os distingue dos "mitos". Contudo, os evangelhos não estão preocupados com a reconstrução histórica do passado; não são relatos biográficos. O histórico é muito mais do que o resíduo morto do passado; é a atualidade desta vida e a sua significação para a comunidade.
A história de Jesus é inseparável da história da fé da comunidade. Esta é a resposta que dá o N.T. ao problema da diferença dos "tempos"8. Há uma distância entre o "passado" de Jesus e o "agora" da comunidade, mas o tempo de Jesus é a plenitude do tempo. É o que significa a ressurreição.
A "história" de Jesus continua, não como simples prolongação do tempo, mas, como começo novo. O tempo e a história se medem pela densidade deste tempo novo, desse "kairós" que é o acontecimento-Jesus. O acontecido "naquele tempo" (como começa sempre a proclamação do evangelho) pode ser anunciado "hoje" como algo real. A vida de Jesus é presença" real daquele que vive para sempre. Por isto os evangelhos apresentam a salvação em atos, nas etapas de um itinerário e na totalidade dessa vida.
Esta é a originalidade dos evangelhos como "gênero literário" novo. É o sentido desta unidade indissolúvel entre história e fé, passado e presente, terrestre e ressuscitado. Este sentido só pode ser narrado e anunciado a partir da fé pascal. "Seguir" é, nos evangelhos, a maneira de "ser discípulo". Por isto, o itinerário da vida de Jesus é inseparável da gênese da fé em Jesus Cristo.
A perspectiva do N.T. é normativa. O decisivo não é o caráter mais ou menos "crítico" das abordagens, mas, a capacidade de dar razão e de situar-se dentro da totalidade da experiência, tal como ela nos é apresentada no N.T.
c) O ponto de partida é a unidade indivisível entre o Jesus terrestre e o Cristo ressuscitado, experiência da sua presença viva na comunidade eclesial.
Para Inácio, esta unidade entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, é a condição de possibilidade de uma autêntica atualização do mistério de Jesus Cristo. De alguma forma, Inácio e todos nós somos contemporâneos de Jesus. Não se transportando a um passado quimérico, mas - como ele diz - "trazendo" essa história ao presente real. A experiência de Inácio pela `contemplação´ é extremamente realista.
As indicações de Inácio, ao longo das três últimas "semanas" dos Exercícios, limitam-se ao essencial do texto evangélico. Nenhuma concessão à fantasia. A cena a ser contemplada é apenas evocada, quase sempre com as mesmas palavras do evangelho. Inácio não faz exegese; limita-se a apresentar o que ele mesmo chama o fundamento da história (EE 2).
Mesmo sendo pré-crítica, a leitura de Inácio é teologicamente certa. Ele vai diretamente ao âmago do evangelho. E a exegese moderna, que sabe muito mais da pré-história do evangelho, pode perder de vista a totalidade do sentido.
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